O Primo Basílio - Cap. 2: CAPÍTULO II Pág. 32 / 414

na véspera vira-se forçado a refazer todo o final de um ato! Todo!

- E tudo isto - acrescentou muito exaltado - porque é um pelintra, um parvo, e quer que se passe numa sala o ato que se passava num abismo!

- Num quê? - perguntou surpreendida D. Felicidade.

O Conselheiro, muito cortês, explicou:

- Num abismo, D. Felicidade, num despenhadeiro. Também se diz, em bom vernáculo, um vórtice. - Citou: "Num espumoso vórtice se arroja..."

- Num abismo!? - perguntaram. - Por quê?

O Conselheiro quis conhecer o lance.

Ernestinho, radioso, esboçou largamente o enredo: - Era uma mulher casada. Em Sintra tinha-se encontrado com um homem fatal, o Conde de Monte Redondo. O marido, arruinado, devia cem contos de réis ao jogo. Estava desonrado, ia ser preso. A mulher, louca, corre a umas ruínas acasteladas, onde habita o conde, deixa cair o véu, conta-lhe a catástrofe. O conde lança o seu manto aos ombros, parte, chega no momento em que os beleguins vão levar o homem. - É uma cena muito comovente - dizia - é de noite, ao luar! - O conde desembuça-se, atira uma bolsa de ouro aos pés dos beleguins, gritando-lhes: "Saciai-vos, abutres!..."

- Belo final! - murmurou o Conselheiro.

- Enfim - acrescentou Ernesto, resumindo -, aqui há um enredo complicado: o Conde de Monte Redondo e a mulher amam-se, o marido descobre, arremessa todo o seu ouro aos pés do conde, e mata a esposa.

- Como? - perguntaram.

- Atira-a ao abismo. E no quinto ato. O conde vê, corre, atira-se também. O marido cruza os braços e dá uma gargalhada infernal. Foi assim que eu imaginei a coisa!

Calou-se, ofegante; e, abanando-se com o lenço, rolava em redor os seus olhos langorosos, prateados como os de um peixe morto.

- É uma obra de cunho, embatem-se grandes paixões! - disse o Conselheiro, passando as mãos sobre a calva.





Os capítulos deste livro