A Gertrudes, o criado de Arroios, o Teixeira, estavam lá cochichando ao pé da cómoda, na penumbra que dava um fólio posto diante do candeeiro; todos se esquivaram em pontas de pés quando lhe sentiram os passos, e a ama continuou a arrumar em silêncio os gavetões. No vasto leito, o pequeno dormia como um Menino Jesus cansado, com o seu guiso apertado na mão. Afonso não ousou beijá-lo, para o não acordar com as barbas ásperas; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa contra a parede, deu um jeito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a sua dor calmar-se naquela sombra de alcova onde o seu neto dormia.
- É necessário alguma coisa, ama? perguntou, abafando a voz.
- Não, meu senhor...
Então, sem ruído, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, à luz de duas velas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pai: e na face que ergueu, envelhecida e lívida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros.
- Estou a escrever, disse ele.
Esfregou as mãos, como arrepiado da friagem do quarto, e acrescentou:
- Amanhã cedo é necessário que o Vilaça vá a Arroios... Estão lá os criados, tenho lá dois cavalos meus, enfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. É número 32 a casa dele, não é? O Teixeira há de saber. Boas noites, papá, boas noites.
No seu quarto, ao lado da livraria, Afonso não pode sossegar, numa opressão, uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silêncio da casa e do vento que calmara, ressoavam por cima lentos e contínuos os passos de Pedro.
A madrugada clareava, Afonso ia adormecendo - quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um criado acudia também com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de pólvora; e aos pés da cama, caído de bruços, numa poça de sangue que se ensopava no tapete, Afonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.
Entre as duas velas que se extinguiam, com fogachos lívidos, deixara-lhe uma carta lacrada com estas palavras sobre o envelope, numa letra firme: Para o papá.