Há um êxtase que assinala o auge da vida e para lá do qual não existe vida. Tal é o paradoxo de viver, este êxtase que vem quando se está mais vivo, mas que vem como esquecimento completo de que se vive. Este êxtase, este esquecimento de que se vive, conhece-o o artista arrebatado e fora de si num momento de inspiração; conhece-o o soldado que, enlouquecido pelo fragor da batalha, recusa a rendição no meio de um campo dizimado; e conhecia-o Buck naquele momento em que, à cabeça da matilha, soltava o velho grito dos lobos e todo ele se esforçava por apanhar o alimento vivo, que velozmente fugia à sua frente através do luar. Ele auscultava as profundezas da sua natureza, e as regiões da sua natureza que eram mais profundas que ele, recuando ao seio do Tempo. Estava possuído pela pura palpitação da vida, a vaga avassaladora do ser, a alegria perfeita de cada músculo, tendão e nervo, em tudo o que não estava morto, mas exultante de vida e desenfreado, exprimindo-se em movimento e voando triunfalmente sob as estrelas e sobre a face da matéria morta e quieta.
Porém, Spitz, frio e calculista mesmo nos seus estados de espírito sopremos, abandonou a matilha e cortou caminho por um estreito braço de terra, no ponto em que a enseada formava uma curva bastante pronunciada. Buck não se apercebeu disso e, ao fazer a curva, com o espectro branco do coelho a voar sempre na sua frente, viu outro espectro branco e muito maior saltar da margem sobranceira directamente sobre a vereda que o coelho seguia. Era Spitz. O coelho não podia voltar para trás, e quando, em pleno ar, os dentes brancos lhe quebraram a espinha, gritou tão alto como um homem ferido de morte. Ao ouvirem tal grito, Q grito da Vida mergulhando do ápice da Vida nas garras da Morte, toda a matilha atrás de Buck ergueu um coro infernal de prazer.
Buck não gritou. Nem se deteve sequer, mas arremessou-se para cima de Spitz, espádua contra espádua, com tal violenta que falhou a garganta do outro. Rebolaram os dois na neve pulverulenta. Spitz pôs-se imediatamente de pé, como se não tivesse sido derrubado, rasgou a espádua de Buck até abaixo e, de um salto esquivou-se para o lado. Por duas vezes matraqueou com as queixadas de encontro uma à outra, como os dentes de aço de uma armadilha, enquanto recuava à procura de melhor piso, o focinho arreganhado e torcido, e rosnando.
