Retrato do Artista Quando Jovem - Cap. 5: V Pág. 194 / 273

Ele tinha para com o mito, sobre o qual nenhuma mente individual traçou ainda uma linha de beleza, e para com os seus desajeitados contos que se contradiziam à medida que percorriam os ciclos, a mesma atitude que perante a religião católica, a atitude dum servo estúpido e leal. Todo e qualquer pensamento ou sentimento que lhe viesse da Inglaterra ou através da cultura inglesa deparava com a sua mente armada contra eles, em obediência a uma palavra de passe; e, do mundo que ficava para lá da Inglaterra, só conhecia a legião estrangeira francesa, na qual falava em alistar-se.

Aliando essa ambição ao humor do jovem, Stephen dizia-lhe muitas vezes que ele era um ganso domesticado, e havia mesmo uma certa irritação posta nesse nome, perante qualquer relutância na conversa ou nos actos do seu amigo, que parecia erguer-se frequentemente entre a mente de Stephen, ansiosa por especular, e os hábitos ocultos da vida irlandesa.

Certa noite, o jovem camponês, cujo espírito fora espicaçado pela linguagem violenta ou exuberante com que Stephen fugia do frio silêncio da revolta intelectual, tinha trazido à mente de Stephen uma estranha visão. Caminhavam os dois lentamente para o quarto de Davin, pelas ruas escuras e estreitas do bairro dos judeus pobres.

- Sucedeu-me uma coisa, Stevie, no Outono passado, já quase no Inverno, e nunca a contei a uma alma viva, e tu vais ser a primeira pessoa a quem eu a conto. Não me recordo se foi em Outubro ou em Novembro. Era Outubro, porque foi antes de eu vir matricular-me aqui.

Stephen tinha voltado o olhar sorridente para o rosto do amigo, lisonjeado pela sua confiança e conquistado pela simpatia do tom natural com que o outro falava.

- Nesse dia, estava eu ausente da minha terra, em Buttevant - não sei se sabes onde fica -, para assistir a um desafio de hurtini (jogo irlandês semelhante ao hóquei) entre os Rapazes de Croke e os Intrépidos de Thurles, e, por Deus, Stevie, foi um desafio dos duros.





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