Retrato do Artista Quando Jovem - Cap. 5: V Pág. 237 / 273

- Receio bem que seja um herege.

- Tem assim tanto receio?

Como resposta, ela tinha-se afastado a dançar, no meio da roda, dançando ligeira e discretamente, sem se entregar a par algum.

As flores brancas agitavam-se na sua cabeça, ao dançar, e, quando estava na sombra, notava-se mais o ardor das suas faces.

Um monge! A sua própria imagem evocava um profanador dos claustros, um franciscano herético, disposto e indisposto a servir, tecendo, como Gherardino da Borgo San Donnino, uma pequena teia de sofismas e sussurrando-a aos ouvidos dela.

Não, não tinha sido a sua imagem. Pensava antes no jovem padre em cuja companhia a vira ultimamente, fitando-o com os seus olhos de pomba, brincando com as páginas do seu livro de irlandês.

- Sim, sim, as senhoras começam a vir até nós. Noto-o todos os dias. As senhoras estão connosco. São as nossas melhores auxiliares para difundir a nossa língua.

- E a Igreja, padre Moran?

- A Igreja também. Também está a aproximar-se. O trabalho também avança nesse campo. Não se preocupe com a Igreja.

Bah! Tinha feito bem em sair da sala desdenhosamente. Tinha feito bem em não a cumprimentar nos degraus da biblioteca! Tinha feito bem em deixá-la namoriscar o seu padre, brincar com uma Igreja que era a copeira da cristandade.

Uma cólera repentina e brutal arrancou da sua alma o último instante de êxtase que ainda permanecia. Quebrou violentamente a bela imagem dela e dispersou os fragmentos em todas as direcções. De todos os lados surgiam da sua memória reflexos distorcidos da imagem dela: a vendedora de flores de vestido esfarrapado com os cabelos húmidos e amaranhados e um rosto grosseiro, que tinha dito estar ao seu serviço e lhe pedira que a estreasse; a criada da cozinha da casa do lado que cantava, enquanto lavava os pratos, com o tom arrastado de uma camponesa, as primeiras estrofes de Nos Lagos e Montanhas de Killarney; uma rapariga que se rira alegremente ao vê-lo tropeçar, quando a grade de ferro do passeio perto de Cork Hill prendera a sola descosida do seu sapato; uma rapariga que ele tinha olhado, atraído pela sua pequena boca carnuda, ao vê-la sair da fábrica de bolachas Jacob, e que lhe tinha gritado por cima do ombro:

- Estás a gostar do que viste, cabelos lisos e sobrancelhas encaracoladas?

E, todavia, sentia que, por mais que aviltasse a imagem dela e a escarnecesse, a sua ira era uma espécie de homenagem.





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