- Recordas-te do resto?
- Do que tu disseste, não é? - perguntou Cranly. - Sim.
Recordo-me. Descobrir a forma de vida ou de arte através da qual o teu espírito se possa expressar com total liberdade.
Stephen ergueu o chapéu, num cumprimento à sua memória.
- Liberdade! - repetiu Cranly. - Mas ainda não és suficientemente livre para cometer um sacrilégio. Diz-me cá, eras capaz de roubar?
- Preferia mendigar - disse Stephen.
- E se nada te dessem, serias capaz de roubar?
- Queres que eu diga - respondeu Stephen - que os direitos de propriedade são provisórios e que, em certas circunstâncias, não é ilícito roubar. Qualquer um o faria, com base nessa crença. Por isso, não vou dar-te essa resposta. Consulta o teólogo jesuíta Juan Mariana de Talavera, que te explicará em que circunstâncias poderás licitamente assassinar o teu rei e se seria preferível administrar-lhe o veneno numa taça ou espalhá-lo na sua túnica ou no arção da sua sela. Pergunta-me, antes, se eu consentiria em que me roubassem, e, se fosse roubado, se chamaria sobre os ladrões aquilo que julgo chamar-se a sanção do braço secular.
- Fá-lo-ias?
- Penso - disse Stephen - que isso me custaria tanto quanto ser roubado.
- Compreendo - disse Cranly.
Retirou o fósforo do bolso e começou a limpar o interstício entre dois dentes. Depois disse, em tom despreocupado:
- Diz-me, por exemplo, serias capaz de desflorar uma virgem?
- Desculpa - disse Stephen, cortesmente -, mas não é essa a ambição da maior parte dos jovens cavalheiros?
- Qual é, então, o teu ponto de vista? - perguntou Cranly. A sua última frase, com um odor ácido semelhante ao do fumo de carvão, e deprimente, excitou o cérebro de Stephen, sobre o qual o fumo parecia pairar.