Retrato do Artista Quando Jovem - Cap. 2: II Pág. 62 / 273

De uma maneira vaga, sentia que o pai estava em dificuldades e que era esse o motivo por que não havia sido enviado de novo para Clongowes. Durante algum tempo, tinha sentido a vaga modificação da sua casa; e aquelas mudanças em coisas que ele considerara imutáveis eram outros tantos pequenos choques para a sua juvenil concepção do mundo. A ambição que sentia, por vezes, agitar-se nas profundezas obscuras da sua alma, não procurava uma saída. Um crepúsculo, semelhante ao do mundo exterior, obscurecia a sua mente, ao escutar os cascos da égua que trotava ao longo da linha do tramway, na estrada para Rock, e a grande vasilha a sacolejar ruidosamente atrás dele.

Voltou-se para Mercedes e, ao cismar na sua imagem, uma estranha inquietação lhe invadia o sangue. Por vezes, crescia dentro dele uma febre que o levava a passear, à noite, sozinho, pela avenida silenciosa. A paz dos jardins e as luzes acolhedoras das janelas exerciam uma terna influência sobre o seu coração inquieto. A algazarra das crianças que brincavam incomodava-o e as suas vozes tolas faziam-no sentir, ainda mais nitidamente do que sentira em Clongowes, que era diferente dos outros. Não lhe apetecia brincar. Desejava encontrar, no mundo real, a imagem insubstancial que a sua alma contemplava tão constantemente. Não sabia onde procurá-la, de momento, mas um pressentimento que o dominava dizia-lhe que essa imagem iria ao seu encontro, sem qualquer acção da sua parte. Encontrar-se-iam tranquilamente, como se sempre se tivessem conhecido e tivessem marcado um encontro, talvez junto de um portão ou em qualquer local mais secreto. Estariam sós, rodeados pela obscuridade e pelo silêncio; e, nesse momento de suprema ternura, ele transfigurar-se-ia. Transformar-se-ia, sob o olhar dela, em algo impalpável e reapareceria diferente.





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