Estava já acostumado. Sabia bem o que significava tudo aquilo. Isto só: Arte.
Pois Gervásio partia do princípio de que o artista não se revelava pelas suas obras, mas sim, unicamente, pela sua personalidade. Queria dizer: ao escultor, no fundo, pouco importava a obra de um artista. Exigia-lhe porém que fosse interessante, genial, no seu aspeto físico, na sua maneira de ser - no seu modo exterior, numa palavra:
- Porque isto, meu amigo, de se chamar artista, de se chamar homem de génio, a um patusco obeso como o Balzac, corcovado, aborrecido, e que é vulgar na sua conversa, nas suas opiniões - não está certo; não é justo nem admissível.
- Ora… - protestava eu, citando verdadeiros grandes artistas, bem inferiores no seu aspeto físico.
E então Gervásio Vila-Nova tinha respostas impagáveis.
Se por exemplo - o que raro acontecia - o nome citado era o de um artista que ele já alguma vez me elogiara pelas suas obras, volvia-me:
- O meu amigo desculpe-me, mas é muito pouco lúcido. Esse de quem me fala, embora aparentemente medíocre, era todo chama. Pois não sabe quando ele…
E inventava qualquer anedota interessante, bela, intensa, que atribuía ao seu homem…
E eu calava-me…
De resto, era outro traço característico em Gervásio: construir as individualidades como lhe agradava que fossem, e não as ver como realmente eram. Se lhe apresentavam uma criatura com a qual, por qualquer motivo,
simpatizava - logo lhe atribuía opiniões, modos de ser do seu agrado; embora, em verdade, a personagem fosse a antítese disso tudo.
É claro que um dia chegava a desilusão. Entretanto, longo tempo ele tinha a força de sustentar o encanto…
Pelo caminho, não pude deixar de lhe observar:
- Você Reparou que ela trazia os pés descalços, em sandálias, e as unhas douradas?
- Você crê?… Não…
A desconhecida estranha impressionara-me vivamente e, antes de adormecer, largo tempo a relembrei e à roda que a acompanhava.