A minha pobre alma! a minha pobre alma!…
Em tais ocasiões os olhos de Ricardo cobriam-se de um véu de luz. Não brilhavam: cobriam-se de um véu de luz. Era muito estranho, mas era assim.
Divagando ainda sobre as dores físicas do seu espírito; num tom de blague que raramente tomava, o poeta desfechou-me uma tarde, de súbito:
- Tenho às vezes tanta inveja das minhas pernas… Porque uma perna não sofre. Não tem alma, meu amigo, não tem alma!
Largas horas, solitário, eu meditava nas singularidades do artista, a querer concluir alguma coisa. Mas o certo é que nunca soube descer uma psicologia, de maneira que chegava só a esta conclusão: ele era uma criatura superior - genial, perturbante. Hoje mesmo, volvidos longos anos, é essa a minha única certeza, e eis pelo que eu me limito a contar, sem ordem - à medida que me vão recordando - os detalhes mais característicos da sua psicologia, como meros documentos na minha justificação.
Factos, apenas factos - avisei logo de princípio.
* * *
Compreendiam-se perfeitamente as nossas almas - tanto quanto duas almas se podem compreender. E, todavia, éramos duas criaturas muito diversas. Raros traços comuns entre os nossos caracteres. Mesmo, a bem dizer, só numa coisa iguais: no nosso amor por Paris.
- Paris! Paris! - exclamava o poeta - Por que o amo eu tanto? Não sei… Basta lembrar-me que existo na capital latina, para uma onda de orgulho, de júbilo e ascensão se encapelar dentro de mim. É o único ópio louro para a minha dor - Paris!
"Como eu amo as suas ruas, as suas praças, as suas avenidas! Ao recordá-las longe delas - em miragem nimbada, todas me surgem num resvalamento arqueado que me traspassa em luz. E o meu próprio corpo, que elas vararam, as acompanha no seu rodopio.