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Fui de súbito acordado da miragem pelos aplausos dos auditores que a música genial transportara, fizera fremir, quase delirar…
E, velada, a voz de Ricardo alteou-se:
- Nunca vibrei sensações mais intensas do que perante esta música admirável. Não se pode exceder a emoção angustiante, perturbadora, que ela suscita. São véus rasgados sobre o Além - o que a sua harmonia soçobra… Tive a impressão de que tudo quanto me constitui em alma, se precisou condensar para a estremecer - se reuniu dentro de mim, ansiosamente, num globo de luz…
Calou-se. Olhei…
Marta regressara. Erguia-se do fauteuil nesse instante…
Ao dirigir-me para minha casa debaixo de uma chuva miudinha, impertinente - sentia-me silvado por um turbilhão de garras de ouro e chama.
Tudo resvalava ao meu redor numa bebedeira de mistério, até que - num esforço de lucidez - consegui atribuir a visão fantástica à partitura imortal.
De resto eu apenas sabia que se tratara de uma alucinação, porque era impossível explicar o estranho desaparecimento por qualquer outra forma. Ainda que na realidade o seu corpo se dissolvesse devido aos lugares que ocupávamos na sala - presumivelmente só eu o teria notado. Com efeito, bem pouco natural seria que, em face de música tão sugestionadora, alguém pudesse desviar os olhos do seu admirável executante…
A partir dessa noite, a minha obsessão ainda mais se acentuou.
Parecia-me, em verdade, enlouquecer.
Quem era, mas quem era afinal essa mulher enigmática, essa mulher de sombra? De onde provinha, onde existia?… Falava-lhe há um ano, e era como se nunca lhe houvesse falado… Coisa alguma sabia dela - a ponto que às vezes chegava a duvidar da sua existência. E então, numa ânsia, corria a casa do artista, a vê-la, a certificar-me da sua realidade - a certificar-me de que nem tudo era loucura: pelo menos ela existia.