Bastava olhá-lo para logo se ver que nenhuma preocupação o torturava. Nunca o vira tão satisfeito, tão bem disposto.
Um vago ar de tristeza, de amargura, que após o seu casamento ainda de vez em quando o anuviava, esse mesmo desaparecera hoje por completo - como se, com o decorrer dos dias, ele já tivesse esquecido o acontecimento cuja lembrança lhe suscitava aquela ligeira nuvem.
As suas antigas complicações de alma, essas, mal eu chegara a Lisboa logo ele me disse que já não o desolavam - pois que, nesse sentido, a sua vida se limpara.
E - facto curioso - justamente depois de Marta ser minha amante é que tinham cessado todas as nuvens, é que eu via melhor a sua boa disposição - o seu orgulho, o seu júbilo, o seu triunfo…
As imprudências de Marta aumentavam agora dia a dia.
Numa audácia louca, nem retinha já certos gestos de ternura a mim dirigidos, na presença do próprio Ricardo!
Todo eu tremia, mas o poeta nunca os estranhava - nunca os via; ou, se os via, era só para se rir, para os acompanhar.
Assim, uma tarde de verão, lanchávamos no terraço, quando Marta de súbito - num gesto que, em verdade, se poderia tomar por uma simples brincadeira agarotada - me mandou beijá-la na fronte, em castigo de qualquer coisa que eu lhe dissera.
Hesitei, fiz-me muito vermelho; mas como Ricardo insistisse, curvei-me trémulo de medo, estendi os lábios mal os pousando na pele…
E Marta:
- Que beijo tão desengraçado! Parece impossível que ainda não saiba dar um beijo… Não tem vergonha? Anda, Ricardo, ensina-o tu…
Rindo, o meu amigo ergueu-se, avançou para mim… tomou-me o rosto… beijou-me…
* * *
O beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual, tivera a mesma cor, a mesma perturbação que os beijos da minha amante.