E quem mais se distinguiu, quem em verdade até exclusivamente falou, foi Gervásio. Nós limitávamo-nos - como acontecia com todos, perante ele, perante a sua intensidade - a ouvir, ou, quando muito, a protestar. Isto é: a dar ensejo para que ele brilhasse…
- Sabe, meu querido Lúcio - uma vez contara-me o escultor -, o Fonseca diz que é um ofício acompanhar-me. E uma arte difícil, fatigante. É que eu falo sempre; não deixo o meu interlocutor repousar. Obrigo-o a ser intenso, a responder-me… Sim, concordo que a minha companhia seja fatigante. Vocês têm razão.
Vocês - note-se em parêntese - era todo o mundo, menos Gervásio… E o Fonseca, de resto, um pobre pintorzinho da Madeira, "pensionista do Estado", de barbichas, lavallière, cachimbo - sempre calado e oco, olhando nostalgicamente o espaço, à procura talvez da sua ilha perdida… Um santo rapaz!
Depois de muito se conversar sobre teatro e de Gervásio ter proclamado que os atores - ainda os maiores, como a Sara, o Novelli - não passavam de meros cabotinos, de meros intelectuais que aprendiam os seus papéis, e de garantir - "creiam os meus amigos que é assim" - que a verdadeira arte apenas existia entre os saltimbancos; esses saltimbancos que eram um dos seus estribilhos e sobre os quais, na noite em que nos encontráramos em Paris, logo me narrara, em confidência, uma história tétrica: o seu rapto por uma companhia de pelotiqueiros, quando tinha dois anos e os pais o haviam mandado, barbaramente, para uma ama da serra da Estrela, mulher de um oleiro, do qual, sem dúvida, ele herdara a sua tendência para a escultura e de quem, na verdade, devido a uma troca de berços, era até muito possível que fosse filho - a conversa deslizou, não sei como, para a voluptuosidade na arte.
E então a americana bizarra logo protestou:
- Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte - e, talvez, a mais bela de todas.