E um dia um prisioneiro mulato - decerto um mistificador - disse-me que o tinham vergastado sem dó nem piedade com umas vergastas horríveis - frias como água gelada, acrescentara na sua língua de trapos…
Aliás, eu com raros dos outros prisioneiros me misturava. Eram - via-se bem - criaturas pouco recomendáveis, sem ilustração nem cultura, vindas por certo dos bas-fonds do vício e do crime.
Apenas me aprazia durante as horas de passeio na grande cerca, falando com um rapaz louro, muito distinto, alto e elançado. Confessou-me que expiava igualmente um crime de assassínio. Matara a sua amante: uma cantora francesa, célebre, que trouxera para Lisboa.
Para ele como para mim, também a vida parara - ele vivera também o momento culminante a que aludi na minha advertência. Falávamos por sinal muita vez desses instantes grandiosos, e ele então referia-se à possibilidade de fixar, de guardar, as horas mais belas da nossa vida - fulvas de amor ou de angústia - e assim poder vê-las, ressenti-las. Contara-me que fora essa a sua maior preocupação na vida - a arte da sua vida…
Escutando-o, o novelista acordava dentro de mim. Que belas páginas se escreveriam sobre tão perturbador assunto!
* * *
Enfim, mas não quero insistir mais sobre a minha vida no cárcere, que nada tem de interessante para os outros, nem mesmo para mim.
Os anos voaram. Devido à minha serenidade, à minha resignação, todos me tratavam com a maior simpatia e me olhavam carinhosamente. Os próprios diretores, que muitas vezes nos chamavam aos seus gabinetes ou eles próprios nos visitavam, a conversar connosco, a fazerem-nos perguntas tinham por mim as maiores atenções.
… Até que um dia chegou o termo da minha pena e as portas do cárcere se me abriram…
Morto, sem olhar um instante em redor de mim, logo me afastei para esta vivenda rural, isolada e perdida, donde nunca mais arredarei pé.