— Portanto, meu amigo, a justiça não é nada muito importante, se a sua aplicação se estende apenas a coisas inúteis. Mas analisemos isto: o homem mais hábil a desferir golpes, num combate, um pugilato ou qualquer outra luta, mas é também o mais hábil a evitá-los?
— Sem dúvida.
— E o que é hábil a preservar-se de uma doença não é também o mal hábil a transmiti-la em segredo?
— Assim parece.
— Mas não é bom guarda de um exército aquele que furta aos inimigos os seus segredos, os seus projectos e tudo o que lhes diz respeito?
— Sem dúvida.
— Portanto, o hábil guarda de uma coisa é também o ladrão hábil.
— Aparentemente.
— Portanto, se o justo é hábil a guardar dinheiro, é também hábil a roubá-lo.
— É esse, pelo menos — disse ele —, o sentido do raciocínio.
— Deste modo, o justo aparece-nos como uma espécie de ladrão e creio que aprendeste isso em Homero. Com efeito, este poeta exalta o avó materno de Ulisses, Autólico, e diz que ultrapassava todos os humanos no hábito do roubo e do perjúrio. Por conseguinte, parece que a justiça, na tua opinião, na de Homero e Simónides, é uma certa arte de furtar, mas a favor dos amigos e em detrimento dos inimigos. Não era assim que o entendias?
— Não, por Zeus! — respondeu ele. — Não sei o que dizia; contudo, continua a parecer-me que a justiça consiste em ser útil aos amigos e prejudicial aos inimigos.
— Mas a quem chamas amigos: aos que parecem honestos a toda a gente ou aos que o são, embora não o pareçam, e de igual modo para os inimigos?
— É natural — disse ele — amar os que consideramos honestos e odiar os que consideramos maus.