- Sim, foi o que dissemos.
- Ora, neste ponto, a opinião que reina actualmente não é inteiramente contrária?
- Sim, é - disse ele.
- Mas não teremos razão para responder, para nossa defesa, que o verdadeiro amigo da ciência aspira naturalmente ao ser, não se detém na multidão das coisas particulares a que a opinião dá existência, mas procede sem desfalecimento e não abranda o seu ardor antes de ter penetrado na essência de cada coisa com o elemento da sua alma a que compete penetrá-la - o que compete ao elemento aparentado a essa essência -, em seguida, tendo-se ligado e unido, por uma espécie de himeneu, à realidade autêntica e tendo engendrado a inteligência e a verdade, atinge o conhecimento e a verdadeira vida, encontra aí o seu alimento e a calma para as dores do parto.
- Isso seria responder tão razoavelmente quanto possível- reconheceu.
- Ora bem! Um homem assim inclinar-se-á a amar a mentira ou, pelo contrário, a odiá-la?
- A odiá-la - respondeu.
- E, por certo, quando a verdade serve de guia, não diremos, penso eu, que o coro dos vícios a acompanha.
- Com efeito, como poderíamos dizê-lo?
- Pelo contrário, é o dos costumes puros e justos que a moderação acompanha.
- Tens razão.
- Portanto, há necessidade agora de enumerar de novo, insistindo na sua urgência, as outras virtudes que compõem o temperamento filosófico? Como te lembras, vimos sucessivamente desfilar a coragem, a grandeza de alma, a facilidade em aprender e a memória. Objectaste-nos então que, sem dúvida, qualquer homem seria obrigado a concordar com o que dizíamos, mas que, deixando de lado os discursos e lançando os olhos para as personagens em questão, diria que vê perfeitamente que uns são inúteis e a maioria de uma perversidade absoluta. Procurando a causa desta acusação, chegámos à análise do motivo por que a maior parte dos filósofos são perversos e foi isso que nos obrigou a retomar uma vez mais a definição do temperamento dos verdadeiros filósofos.
- Foi isso mesmo.
- Temos de considerar agora as degradações desse temperamento: como se perde no maior número, como só escapa à corrupção em alguns, aqueles a quem chamamos não perversos, mas inúteis; consideraremos em seguida aquele que afecta imitá-lo e atribui a si mesmo uma função: quais são os temperamentos que, usurpando uma profissão de que são indignos e os ultrapassa, chegam a mil desvios e associam à filosofia essa deplorável reputação que assinalas.