- Pois bem! Considera-o da seguinte maneira: há necessidade para o ouvido e para a voz de alguma coisa de espécie diferente para que um ouça e a outra seja ouvida, de modo que, se este terceiro elemento vier a faltar, o primeiro não ouça e a segunda não seja ouvida?
- De modo nenhum - disse ele.
- E julgo que muitas outras faculdades, para não dizer todas, não têm necessidade de nada semelhante. Ou podes citar-me alguma?
- Não - respondeu.
- Mas não sabes que a faculdade de ver e ser visto tem necessidade disso? -Como?
- Admitindo que os olhos são dotados da faculdade de ver, que aquele que possui esta faculdade procura servir-se dela e que os objectos a que a aplica são coloridos, se não intervier um terceiro elemento, sabes que a vista não captará nada e as cores serão invisíveis?
- A que elemento te referes? - perguntou?
- Aquele a que chamas luz - respondi.
- Tens razão.
- Assim, o sentido da vista e a faculdade de ser visto estão unidos por um laço incomparavelmente mais precioso do que o que forma as outras uniões, contanto que a luz não seja desprezada.
- Mas com certeza, está-se muito longe de a desprezar!
- Qual é, então, de todos os deuses do céu, aquele que podes designar como o senhor disto, aquele cuja luz permite que os nossos olhos vejam da melhor maneira possível e que os objectos visíveis sejam vistos?
- O mesmo que tu designarias, assim como toda a gente; porque é, evidentemente, o Sol que tu me pedes que nomeie.
- Agora, não está a vista, pela sua natureza, nesta relação com esse deus?
- Que relação?
- Nem a vista é o Sol, nem o órgão em que ela se forma e a que chamamos olho.
- Por certo que não.
- Mas, de todos os órgãos dos sentidos, o olho é, creio eu, o que mais se assemelha ao Sol. - De longe.
- Pois bem! A força que possui não lhe vem do Sol, como uma emanação deste?
- Certamente.
- Portanto, o Sol não é a vista, mas, sendo o seu princípio, é apercebido por ela.
- Sim, é - disse ele.
- Fica, pois, sabendo que é a ele que eu chamo filho do bem, que o bem engendrou igual a si mesmo. O que o bem é, no campo da inteligência em relação ao pensamento e aos seus objectos, o Sol é-o no campo do visível, em relação à vista e aos seus objectos.
- Como? - perguntou. - Explica-me isso.
- Sabes - respondi - que os olhos, quando se voltam para objectos cujas cores já não são iluminadas pela luz do dia, mas pela claridade dos astros nocturnos, perdem a acuidade e parecem quase cegos, como se não fossem dotados de visão clara.
- Sei-o muito bem.