Ocupa a extremidade esquerda do espelho. Uma silhueta confusa colou-se à mulher, creio discernir um homem; atrás deles, numa nuvem, há outras formas, formas que se agitam. Não e um simples quadro que contemplo: é uma cena viva, um drama real. A mulher enovela-se e treme. O homem, a seu lado, vai-se abaixo. As formas em movimento fazem gestos bruscos. A curiosidade sufocou dentro de mim o receio. É de enlouquecer ver tanto e tão pouco.
Descreveria a mulher até ao mais ínfimo pormenor. E muito bela, muito jovem, não mais de vinte e cinco anos, ao que me parece. Os cabelos, de um castanho muito rico, escurecem em certos sítios e douram-se quase nas pontas.
Uma pequena touca de renda, bordada com pérolas, arredondada nos cantos, desce-lhe na testa, que é alta, demasiadamente alta talvez para a beleza perfeita: mas não devia ser diferente, porque à doçura daquele rosto feminino acrescenta a força. Sobrancelhas muito delicadamente arqueadas encimam pesadas pálpebras, depois vêm admiráveis olhos, grandes e sombrios, cheios de uma emoção que chegaria ao delírio se a raiva e o pavor não enfrentassem o orgulho de uma alma que ainda quer mandar. As faces são pálidas, os lábios lívidos, o queixo deliciosamente redondo, tal como a garganta. A mulher está sentada, inclinada para a frente na cadeira, e tensa, rígida, como se estupefacta pelo terror. Enverga um vestido de veludo preto; uma jóia rutila-lhe no peito; uma cruz de ouro apaga-se na sombra de uma prega. Sim, é bem ela, tal como o velho espelho de prata a ressuscita. Que cena atroz pôde então, outrora, imprimir-se ali? E de que maneira, para que um homem de hoje, dedicando-lhe a sua atenção, a encontre séculos depois?
Outro pormenor: no vestido de veludo preto, à esquerda, havia uma mancha que ao princípio tomei por um informe tufo de fita branca.
