Foi de facto maravilhosa a forma como, com a dignidade e sentido de conveniência da dona de casa britânica, no espaço de poucos minutos a senhora adornou a mesa central com uma toalha imaculadamente branca, colocou os guardanapos sobre ela, e dispôs a refeição simples com toda a elegância da civilização, incluindo uma lanterna eléctrica no centro. Maravilhoso, também, foi descobrir que os nossos apetites estavam devoradores.
- É a medida da nossa emoção - declarou Challenger, com aquele ar de condescendência com que trazia a sua mente científica para a explicação de factos insignificantes. - Atravessamos uma grande crise. Isso implica perturbação molecular. Isso, por sua vez, implica a necessidade de reparação. O grande desgosto ou a grande alegria provocam uma fome intensa... não a abstinência de comida, como os nossos romancistas pretendem.
- É por isso que as pessoas da província fazem grandes banquetes nos funerais - arrisquei eu.
- Exactamente. O nosso jovem amigo escolheu um exemplo excelente. Deixe-me servir-lhe outra fatia de língua.
- O mesmo acontece com os selvagens - disse Lorde John, cortando a carne de vaca. - Vi-os enterrarem um chefe no Rio Aruwimi, e comeram um hipopótamo que devia pesar tanto como uma tribo inteira. Há algumas tribos na Nova Guiné que comem o próprio defunto, para uma última purificação. Bem, de todos os banquetes de funeral nesta terra, suponho que o que estamos a comer é o mais estranho.
- O mais estranho - disse a Sr.ª Challenger - é que não consigo sentir pena dos que morreram. O meu pai e a minha mãe vivem em Bedford. Sei que estão mortos, e no entanto, no meio desta tremenda tragédia universal, não consigo sentir pena de nenhum indivíduo em concreto, nem sequer deles.
- E a minha velha mãe na sua casinha na Irlanda - disse eu. - Consigo vê-la na minha mente, com o seu xaile e o seu gorro de renda, recostada com os olhos fechados na velha cadeira de costas altas perto da janela, com os óculos e o livro a seu lado. Por que deveria chorar por ela? Ela morreu e eu estou a morrer, e numa outra vida poderei estar mais perto dela do que a Inglaterra da Irlanda. No entanto, tenho pena de pensar que aquele corpo querido já não vive.