Capítulo I – A Ciência da DeduçãoSherlock Holmes tirou o frasco do canto da prateleira do fogão e a seringa hipodérmica do seu arrumado estojo de marroquim. Com os seus dedos longos, brancos, nervosos, ajustou a delicada agulha e arregaçou a manga esquerda da camisa. Durante alguns instantes fitou pensativamente o antebraço e o pulso, com tendões salientes e cheios de marcas e cicatrizes das inúmeras picadas. Por fim, espetou certeiramente a ponta aguçada, comprimiu o pequeno êmbolo e afundou-se nos estofos de veludo da cadeira de braços, soltando um longo suspiro de satisfação.
Três vezes por dia, desde há muitos meses, eu presenciara este acto, mas o hábito não levara o meu espírito a aceitá-lo. Pelo contrário, de dia para dia aquela cena irritava-me cada vez mais, e pesava-me a consciência ao pensar que me faltara a coragem para protestar. Uma e outra vez jurara a mim próprio que desabafaria acerca do assunto; mas aquele ar calmo e indiferente do meu companheiro fazia dele a última pessoa com quem se desejaria ser inconveniente. As suas enormes faculdades, o ar magistral e a experiência que já tivera das suas muitas e extraordinárias qualidades, tudo me fazia encarar com hesitação e reserva qualquer controvérsia.
Naquela tarde, contudo, não sei se por causa do Beaune que bebera ao almoço, se por estar mais exasperado devido à extrema premeditação da sua atitude, senti repentinamente que não me podia calar por mais tempo.
- Hoje o que é - perguntei -, morfina ou cocaína? Levantou os olhos languidamente do velho livro que abrira.
- É cocaína - respondeu -, uma solução a sete por cento. Quer experimentar?
- Claro que não - respondi bruscamente. - O meu organismo ainda não recuperou desde a campanha afegã.