O Bobo - Cap. 14: XIV - Amor e vingança Pág. 146 / 191

Tinha anoitecido, e o silêncio continuava profundo: a frouxa claridade das estrelas não penetrava no cárcere cujas trevas eram densas, cuja atmosfera era grossa e húmida no meio da secura de um ardente mês de Junho. Cevando-se na amargura, o senso íntimo de Egas reconcentrara na dor toda a sua energia, e este devorar-se a si próprio era ajudado pelo repouso dos sentidos externos, inúteis para o pobre preso na sua imobilidade e no silêncio e escuridão que o rodeava.

Daí a pouco, porém, uma toada longínqua de harpas, doçainas e saltérios sussurrou a espaços trazida nas lufadas do vento. Insensivelmente o trovador pôs-se a escutá-la, e sentiu correr-lhe nas veias, que pulsavam ardentes, um frescor que refrigerava. A melodia que se ouve ao longe na solidão nocturna é como bênção de Deus para o infeliz, porque é consoladora e santa. Quando aqueles sons vibravam mais distintos, Egas sentia dentro da alma uma certa voluptuosidade na dor, e a imaginação lhe pintava a imagem de Dulce como visão aérea que descia ao horrível calabouço, trajando alvas roupas, cingida a fronte de cecéns virginais, e que apertando-o ao seio o arrebatava no meio de hinos dos anjos para as delícias eternas da pátria do verdadeiro repouso. Era um sonho febril o seu; mas havia nele um êxtase indizível que lhe apagava da memória a situação em que viera lançar-se. Enfim, a toada cessou, e o cavaleiro caiu de chofre na realidade. Esse tombar repentino do céu no abismo fez-lhe manar sangue de todas as feridas do coração. O vento sussurrava ainda; porém o seu agreste sibilar só lhe fazia lembrar o ruído do verme que no cemitério devia lentamente devorar os membros do justiçado.





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