O Bobo - Cap. 4: IV - Receios e esperanças Pág. 30 / 191

– A rainha é a viúva do conde Henrique. Não queirais obrigar- -me a dizer-vos o que acerca dela tumultua nesta alma. Basta que responda à vossa pergunta. As honras que possuo herdei-as de meus avós; os préstamos ganhei-os à lança e à espada: foi preço de sangue o que dei por eles. Preito e lealdade? Ricos-homens de Portugal guardam-no a quem lhes guarda seus foros. Têm estes sido guardados? Sabemo-lo nós: sabe-o Deus. Ele será o nosso juiz.

– O juízo de Deus – tornou Martim Eicha com mal disfarçada raiva – profere-se em repto e combate, segundo foro dos bem-nascidos de Espanha. Porque não ides com os acostados que pelejam debaixo do vosso pendão, e vivem da vossa caldeira, ajuntar-vos com o infante? Afirmo-vos que entre ele e a filha de Afonso de Leão há repto e haverá combate. Tereis aí o juízo de Deus.

– Porque eu – atalhou o Lidador cravando nele os olhos indignados –, homem afeito à vida de batalhas, trabalharei até ao fim, para que irmãos não derramem sangue de irmãos em luta de mãe e de filho; porque eu, o homem que, ao abrir os olhos no mundo, a primeira luz que vi foi o reflexo brilhante de armas polidas, e que espero, ao cerrá-los para sempre, vê-las reluzir no volver derradeiro deles, tomei a meu cargo o vosso mister, o mister dos clérigos e letrados da corte, dos homens de paz, dos prudentes, que saudais o dia em que lanças cristãs topem em escudos de cristãos; que sorrides à imagem desse dia em que esperais ver satisfeitos ódios e vinganças mesquinhas. Tentarei frustrar o atroz pensamento dos maus, e se o meu tentar sair vão, ao menos a consciência há-de ficar-me tranquila.

O capelão, que sabia qual era o carácter violento de Gonçalo Mendes da Maia, julgou acertado não lhe responder: o abade, porém, que se havia conservado em silêncio durante a disputa, tomou nesse ponto a mão.





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