Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 3: CAPÍTULO II - A MULHER QUE O MUNDO RESPEITA Pág. 38 / 156

- Leve, leve - acudiu D. Paula -, que não aceito nada.

- Pois eu tenho ordem de deixar ficar tudo - replicou a saloia, pousando sobre a padieira de uma porta interposta na gradaria o cabaz e a gaiola.

A este tempo assomou numa janela o pai da menina, perguntando o que vinha a ser o cesto e o pássaro que estava sobre a porta. D. Paula, dominando rapidamente o sobressalto da surpresa, disse que fora a prima Piedade que lhe mandara aquele periquito e o cestinho das flores. O pai, que era amigo de periquitos, desceu ao jardim; e, no entanto, a filha escondeu a carta, que ia presa à grinalda com um laço de fita encarnada. O velho, examinada a ave, passou a espreitar o cabaz; e, como visse os convidativos pêssegos, que eram seis, comeu três com sôfrega delícia, deu um à filha, e guardou dois nas algibeiras do robe de chambre. Paula, para ler a carta, escondeu-se num caramanchel. A prosa vil seria descabida em cena tão eminentemente poética. Era, pois, em verso a minha carta, que, segundo os ditames da poética de Aristóteles e Longino, devo chamar epístola e não carta. A qual epístola foi ainda o sonoro Castilho que me induziu a escrevê-la com os seguintes ditames da citada Primavera:

Formaremos cantigas, em que aos ecos

Dos campos entre a lida repitamos

As perfeições, os méritos, os nomes

Das Napeias, etc.

E noutra passagem:

Depois que pouco e pouco transformado

Se houver em confiança o pejo, o susto,

Mudaremos de estilo: nos nossos versos,

E só, e de contínuo a formosura

Em fogo nos porá do estro as asas.

Hão de sorrir-se e comprazer-se, e muitas

Suspenderão no seu caminho os passos.

É a lei sem exceção; domina em todas

A sede, a glória, de chamar-se belas

Não entendi à letra o primeiro aviso, que diz: Formaremos cantigas.





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