O gás sufocava, vibrando cruamente naquela sala clara, de um tom desmaiado de canário, raiada de reflexos de espelhos. Aqui e além uma tosse tímida de catarro desmanchava o silêncio, logo abafada no lenço. E na extremidade da galeria, num camarote feito de tabiques, com sanefas de veludo cor de cereja, duas cadeiras de espaldar dourado permaneciam vazias, na solenidade real do seu damasco escarlate.
No entanto, no estrado, o Rufino, um bacharel transmontano, muito trigueiro, de pêra, alargava os braços, celebrava um anjo, «o Anjo da Esmola que ele entrevira, além no azul, batendo as asas de cetim...» Ega não compreendia bem - entalado entre um padre muito gordo que pingava de suor, e um alferes de lunetas escuras. Por fim não se conteve:- «Sobre que está ele a falar?» E foi o padre que o informou, com a face luzidia, inflamada de entusiasmo:
- Tudo sobre a caridade, sobre o progresso! Tem estado sublime... Infelizmente está a acabar!
Parecia ser, com efeito, a peroração. O Rufino arrebatara o lenço, limpara a testa lentamente; depois arremeteu para a borda do tablado, voltando-se para as cadeiras reais com um tão ardente gesto de inspiração - que o colete repuxado descobriu o começo da ceroula. Foi então que Ega compreendeu. Rufino estava exaltando uma princesa que dera seiscentos mil reis para os inundados do Ribatejo, e ia a beneficio deles organizar um bazar na Tapada. Mas não era só essa soberba esmola que deslumbrava o Rufino - porque ele, «como todos os homens educados pela filosofia e que têm a verdadeira orientação mental do seu tempo, via nos grandes factos da história não só a sua beleza poética, mas a sua influência social.