-. Que súbita investida - exclamei - fazes contra o meu discurso, sem indulgência para com os meus vagares! Mas talvez não saibas que, no momento em que acabo, a custo, de escapar a duas vagas, tu ergues uma outra, a mais alta e a mais terrível das três. Quando a tiveres visto e ouvido, desculpar-me-ás certamente por ter, não sem razão, hesitado e receado enunciar e tentar examinar uma proposta tão paradoxal.
- Quanto mais falares desse modo menos te dispensaremos de dizeres como pode ser realizado semelhante governo. Portanto, explica-o sem mais delongas.
- Primeiramente - retorqui -, devemos recordar que foi a procura da natureza da justiça e da injustiça que nos conduziu até aqui.
- Sem dúvida, mas que interessa isso? - perguntou.
- Nada. Simplesmente, se descobrirmos o que é a justiça, admitiremos que o homem justo em nada deve diferir dela, mas ser-lhe perfeitamente idêntico - ou contentar-nos-emos em vê-lo aproximar-se dela o mais possível e participar dela em grau mais elevado que os outros?
- Contentar-nos-emos com isso.
- Era para termos modelos que investigávamos o que é a justiça em
si mesma e o que seria o homem inteiramente justo, se viesse a existir; por essa mesma razão, procurávamos a natureza da injustiça e do homem absolutamente injusto: queríamos, erguendo os olhos para um e outro, ver a felicidade e a infelicidade reservada a cada um deles, a fim de sermos obrigados a concluir, no que nos diz respeito, que aquele que se lhes assemelhar mais terá uma sorte mais semelhante à delas; mas o nosso propósito não era demonstrar a possibilidade de existência destes modelos.