A República - Cap. 8: Capítulo 8 Pág. 236 / 290

- Aqui tens o que acontece - prossegui - e outros pequenos abusos como estes. O mestre receia os discípulos e lisonjeia-os, os discípulos fazem pouco caso dos mestres e dos pedagogos. Geralmente, os jovens copiam os mais velhos e lutam com eles em palavras e acções; os velhos, por seu lado, sujeitam-se às maneiras dos jovens e mostram-se cheios de gentileza e petulância, imitando a juventude, com medo de serem considerados enfadonhos e despóticos.

- É exactamente assim.

- Mas, meu amigo, o limite extremo da abundância de liberdade que um tal Estado oferece é atingido quando as pessoas dos dois sexos que se compram como escravos não são menos livres do que aqueles que as compraram. E quase nos esquecíamos de dizer até onde vão a igualdade e a liberdade nas relações mútuas dos homens e das mulheres.

- Mas porque não havemos de dizer - observou -, segundo a expressão de Ésquilo, «o que tínhamos na ponta da língua»?

- Muito bem - respondi -, e é isso o que faço. Até que ponto os animais domesticados pelos homens são aqui mais livres do que noutra parte é coisa que custa a acreditar quando se não a viu. Na verdade, segundo o provérbio'", as cadelas comportam-se aí como as donas; os cavalos e os burros, habituados a uma marcha livre e altiva, atropelam todos os que encontram no caminho, quando estes não lhes cedem o passo. E o mesmo sucede com o resto: tudo transborda de liberdade.

- Estás a contar-me o meu próprio sonho - disse ele -, dado que é rara a vez que isso não me aconteça, quando vou ao campo.

- Ora, estás a ver o resultado de todos estes abusos acumulados? Compreendes que tornam a alma dos cidadãos tão suspeitosa que, à mínima aparência de opressão, estes se indignam e revoltam? E acabam, como sabes, por não se importar com as leis escritas ou não escritas, a fim de não terem absolutamente nenhum senhor.

- Sei-o muitíssimo bem - respondeu.

- Pois bem, meu amigo - continuei -, é este governo tão belo e juvenil que dá origem à tirania, pelo menos a meu ver.

- Juvenil, na verdade! - disse ele. - Mas que acontece em seguida?

- O mesmo mal- respondi - que, tendo-se desenvolvido na oligarquia, causou a sua ruína, desenvolve-se aqui com mais amplitude e força, devido ao desregramento geral, e reduz a democracia à escravidão; porque é certo que todo o excesso provoca geralmente uma viva reacção nas estações, nas plantas, nos nossos corpos e nos governos, mais do que em qualquer outra coisa.

- É natural.





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