A República - Cap. 9: Capítulo 9 Pág. 244 / 290

- Mas alongámo-nos demasiado sobre este ponto; o que queríamos constatar era que há em cada um de nós, mesmo nos que parecem totalmente regrados, uma espécie de desejos terríveis, selvagens, sem leis, e isso é posto em relevo pelos sonhos. Vê se o que digo te parece verdadeiro e se estás de acordo comigo.

- Mas eu estou de acordo.

- Lembra-te agora do homem democrático tal como o representámos:

é formado desde a infância por um pai parcimonioso, honrando somente os desejos intencionais e desprezando os desejos supérfluos, que não têm por objecto senão o divertimento e o luxo. Não é assim?

-É.

- Mas, tendo convivido com homens mais requintados e cheios desses desejos que descrevíamos há instantes, entrega-se a todos os transportes e adopta o comportamento desses homens, por aversão pela parcimónia do seu pai; contudo, como é de carácter melhor que os seus corruptores, sacudido em dois sentidos opostos, acaba por ocupar o meio entre esses dois géneros de existência e, pedindo a cada um prazeres que julga moderados, leva uma vida isenta de mesquinhez e desregramento; assim, de oligárquico tornou-se democrático.

- Era e continua a ser essa - disse ele - a ideia que temos de um tal homem.

- Supõe agora que, tendo-se tornado velho por seu turno, tem um filho educado em hábitos semelhantes.

- Estou a supô-lo.

- Supõe, além disso, que lhe acontece a mesma coisa que ao pai, que é arrastado para um desregramento completo, a que aqueles que o arrastam chamam liberdade completa, que o seu pai e os seus parentes protegem os desejos intermédios e os outros a facção contrária; quando estes hábeis mágicos e fabricantes de tiranos desesperam de reter o jovem por qualquer outro meio, esforçam-se por fazer nascer nele um amor que presida aos desejos ociosos e pródigos: qualquer zângão alado e de grande porte. Ou julgas que o amor é algo diferente em tais homens?

- Não - disse ele -, não é.





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