A República - Cap. 9: Capítulo 9 Pág. 262 / 290

- Ora - prossegui -, segundo, esta explicação, é proveitoso a alguém apoderar-se de ouro injustamente, se não o puder fazer sem escravizar ao mesmo tempo a melhor parte de si mesmo à mais vil? Se recebesse ouro para entregar como escravos o filho ou a filha, e entregá-los a senhores selvagens e maus, não tiraria daí nenhuma vantagem, mesmo que recebesse por isso somas enormes; mas, se escravizar o elemento mais divino de si mesmo ao elemento mais ímpio e mais impuro, sem sentir um mínimo de piedade, não será um infeliz e não conseguirá o seu ouro à custa de uma morte ainda mais horrível do que aquela de que se tornou culpada Erifila, ao vender por um colar a vida do seu esposos?

- Sim, certamente - disse Gláucon -, porquanto respondo como teu interlocutor.

- Ora, não achas que, se desde sempre se censurou a libertinagem, foi porque larga as rédeas a essa criatura terrível, enorme e multiforme, mais do que seria aconselhável?

- É evidente - respondeu.

- E, se se censura a arrogância e o carácter irritável, não é porque desenvolvem e fortalecem desmedidamente o elemento em forma de leão e de serpente?

- Sem dúvida.

- E o que faz censurar o luxo e a languidez não é o relaxamento, a distensão desse elemento que provoca a: cobardia? - Sim, certamente.

- E, se se censura também a lisonja e a baixeza, não é porque escravizam esse elemento irascível ao animal turbulento e porque este o envilece ', pelo seu amor insaciável das riquezas e, desde a infância, o transforma de leão em macaco?

- É isso mesmo.

- E, na tua opinião, de onde provém o estado de artesão e de sarrafaçal, que implica uma espécie de injúria? Não é porque no artesão o elemento melhor se apresenta tão naturalmente fraco que não pode dominar esses animais interiores, antes os lisonjeia e só pode aprender a satisfazê-los?

- Parece que sim - disse ele.

- Ora, não é para que esse homem seja governado por uma autoridade semelhante à que governa o melhor que dizemos que deve ser escravo do melhor, em quem predomina o elemento divino, não porque pensemos que essa escravidão deve resultar em seu prejuízo, como supunha Trasímaco a propósito dos governados, mas porque não há nada mais vantajoso para cada um do que ser governado por um mestre divino e sábio, quer habite dentro de nós mesmos, o que seria o melhor, quer nos governe de fora, a fim de que, sujeitos ao mesmo regime, nos tornemos todos, tanto quanto possível, semelhantes uns aos outros e amigos.

- Muito bem.





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