Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 7: TERCEIRA PARTE – ESTÔMAGO
CAPÍTULO I - DE COMO ME CASEI Pág. 141 / 156

Dali três léguas sentei-me à sombra de uns azinheiros e abri o alforge: era uma galinha assada, uma cabaça de vinho e um pão.

A leitora de coração fino e melindroso pergunta-me se eu gostei daquilo, se me não seria mais saboroso encontrar um ramo de flores.

Não, minha senhora, eu gosto muito mais de encontrar a galinha, o pão e a cabaça.

Os prazeres das flores cedo-os bizarramente aos amadores da vossa Excelência e a Vossa Excelência não levo a mal que se ria da filha do sargento- mor de Soutelo, que punha flores aos santos e cuidava seriamente do estômago das pessoas que lhe eram caras.

***

Cheguei a minha casa e estranhei-a como se não fosse a minha.

Vi uns velhos criados, que se moviam taciturnos e tristes. Peava-me no peito aquela solidão, mais amargurada pelas lembranças da infância. O espírito refugiava-se em Soutelo, e eu pasmava de não sentir renascer o coração ao calor daqueles desejos, que semelhavam saudades.

Abreviei os meus arranjos, fazendo ler o primeiro proclame do meu casamento no dia imediato, que era domingo, dispondo novos arrendamentos dos bens, demitindo-me da regedoria e comprando na vila próxima algumas prendas de noivado.

Nestes preparativos, andava comigo um contentamento plácido e sereno como eu nunca houvera experimentado. Adormecia e acordava alegre, bem que esta alegria do despertar não fosse um alvoroço, uma embriaguez de gozo como eu sentira em outra idade, nos efêmeros prazeres, ou meras esperanças de os alcançar. Agora, a minha satisfação era toda ver-me sequestrado do mundo, estimado de cinco velhos felizes, ligado a uma mulher inocente, moldada pelas doces imagens que eu julgava extintas nos tempos bíblicos. Figurava-se-me a minha vida futura no decurso de trinta anos, que podia ainda viver.





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