Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 2: PRIMEIRA PARTE – CORAÇÃO
CAPÍTULO I - SETE MULHERES Pág. 18 / 156

D. Martinha.

Eu bem a vi desfazer-se em atenções comigo, dando-me o melhor quarto, a melhor manteiga, e o café, depois do jantar, fora do ajuste; mas os olhos do meu coração andavam desvairados em contemplações de mais poéticas provas de amor, e não podiam baixar ao devido apreço da boa manteiga e do café de Cabo Verde, como amorosos mimos e demonstração de ternura.

Aos Domingos, a Sra. D. Martinha honrava os hóspedes ao jantar com a sua presença. Eram banquetes estes jantares, obrigados a vinho de Setúbal, presente semanal de um tio da senhora, sujeito de sessenta anos, que remoçava aos vinte, naqueles dias em que ele era certo à mesa.

A jovial dama erguia-se sempre escarlate até às orelhas e lançava-se a um tão voluptuariamente alquebrada, que seria muito para amar-se, se a hipótese consentisse que ela tivesse dentro do seio tanto coração como vinho de Setúbal. Vi-a dançar a jota com requebros de escandecente despejo; não era menos lúbrica no lundum chorado; e, não sei se de experiência, se de instinto,

saracoteava-se tão peneirada nas evoluções do fado, que eu estava pasmado do que via.

Convidava eu amigos a jantarem comigo aos domingos, prevenindo-os para gozarem as delícias gratuitas daquela dama, transfigurada em bacante, posto que as antigas bacantes não o eram sem a condição da virgindade, e neste ponto, de modo algum quero ultrajá-la com a comparação. Os meus amigos, já apodrentados de coração, encaravam na desenvolta Martinha com olhos cobiçosos, e, ao seu pesar, confessavam que o amado era eu, e unicamente eu. Maus conselheiros excitaram-me a pensar nos encantos, que eles viam, e - com pejo o digo - descobri que a mulher tinha reduzido a pântano uma parte do meu coração para retouçar-se nele.

Amei-a; e ela, sem lho eu dizer, conheceu-o logo.





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