Coração, Cabeça e Estômago - Cap. 4: CAPÍTULO III - A MULHER QUE O MUNDO DESPREZA Pág. 58 / 156

Estas matérias, que a todo o homem, em estado normal, se figuram áridas e insípidas, a mim pareciam- me deleitosas e lucidíssimas; e os ouvintes, salva a lisonja, mostravam-se igualmente admirados que instruídos. Não poderemos inferir daqui o facto de que as ciências de certa transcendência as devemos à alucinação de certas cabeças?, e que o espírito humano, sem o complemento de outros espíritos, cuja imortalidade ninguém discute, há de sentir sempre a estreiteza dos seus limites? Não discorro agora a este respeito, porque bebo água há dois anos.

Numa dessas noites de exorbitância intelectual, como o auditório me abandonasse, saí do Marrare das Sete Portas e fui ver a Lua, que crispava de cintilantes escamas a superfície prateada do Tejo. Eram onze horas. Num dos bancos que adornam o Cais do Sodré vi sentada uma mulher, que trajava de escuro e apoiava a cabeça entre as mãos, que, ao revérbero de um candeeiro, pareciam de alabastro, amarelecido de anos.

Aproximei-me dela, parei com quanta firmeza as pernas me permitiam, e disse-lhe:

- Mulher!

E ela, voltando para mim a face pálida, encarou-me e não respondeu.

- Mulher! - tornei, encostando-me ao peitoril do cais para manter a dignidade e aprumo do discurso.

- Que quer? - respondeu ela.

- Que tens tu com as magnificências da noite? Que segredos vens tu dizer às estrelas, que o Criador fizera tuas irmãs na formosura do brilho? Se te despenhaste da tua inocência, que queres tu deste céu que só verte o orvalho consolador no seio das criaturas afligidas sem mancha, das padecentes sem culpa, ou das infames com dinheiro?

Pouco mais ou menos, foi isto o que lhe disse, que me lembre; o restante, a não ser discurso sobre a história filosofia.

O mais que me lembra é que, às cinco horas da manhã desse dia de Agosto, a mulher do Cais do Sodré ia comigo numa carruagem e respirava o ar balsâmico da estrada de Sintra.





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