A República - Cap. 6: Capítulo 6 Pág. 176 / 290

Declaro que não há nenhum motivo para pretender que uma ou outra destas coisas, ou ambas, sejam impossíveis; de outro modo seria com razão que se zombaria de nós, como indivíduos que formulam esperanças vãs, não te parece?

- Sim, parece.

- Portanto, se uma necessidade obrigou homens eminentes em filosofia a encarregarem-se do governo de um Estado, na vastidão infinita do tempo passado, ou a isso os obriga actualmente numa região bárbara que a distância furta aos nossos olhares, é preciso obrigá-los a isso um dia, estamos dispostos a sustentar que a constituição de que falamos existirá quando a Musa filosófica se tornar senhora de uma cidade. Com efeito, não é impossível que o venha a ser e não propomos coisas impossíveis; mas reconhecemos que são difíceis.

- Concordo contigo.

- Mas a multidão não é dessa opinião, dirás.

-Talvez.

- Ó bem-aventurado amigo - retorqui -, não acuses de mais a multidão. Ela mudará de opinião se, em vez de a provocares, a aconselhares e, refutando as acusações proclamadas contra o amor e a ciência, lhe indicares aqueles a quem chamas filósofos e lhe definires, como há pouco, a sua natureza e profissão, a fim de que não pense que lhe falas dos filósofos tais como ela os concebe. Quando puder ver as coisas assim, não achas que mudará de opinião e responderá de modo diferente? Ou julgas que é natural irritar-se contra quem não se irrita e odiar quem não odeia, quando se é, por natureza; manso e sem ódio? Quanto a mim, antecipando-me à tua objecção, afirmo que um carácter tão intratável só se encontra em algumas pessoas, e não na multidão.

- Sossega, estou de acordo.

- Concordas também que, pelos preconceitos da maioria relativamente à filosofia, são responsáveis esses estrangeiros que se introduzem nela como indesejáveis libertinos numa orgia e que, injuriando-se, tratando-se com malevolência e fazendo incidir sempre as suas discussões sobre questões pessoais, se conduzem da maneira que menos se adequa à filosofia?

- Sem dúvida.