A República - Cap. 6: Capítulo 6 Pág. 177 / 290

- Assim, Adimanto, aquele cujo pensamento se entrega realmente à contemplação das essências não tem vagar para baixar os olhos para as ocupações dos homens, declarar-lhes guerra e encher-se de ódio e animosidade; com a visão dominada por objectos fixos e imutáveis, que não comportam nem suportam mútuos preconceitos, mas estão todos sob a lei da ordem e da razão, esforça-se por imitá-los e, tanto quanto possível, tornar-se semelhante a eles. Ou achas que é possível não imitar aquilo de que a todo o momento nos aproximamos com admiração?

- Não é possível.

- Portanto, estando o filósofo em contacto com o que é divino e sujeito à ordem, ele mesmo torna-se ordenado e divino, na medida em que isso é possível ao homem; mas não há nada que escape ao descrédito, não achas?

- Com certeza.

- Ora, se uma necessidade o forçasse a tentar fazer transitar a ordem que contempla no alto para os costumes públicos e privados dos homens, em vez de se limitar a modelar o seu próprio carácter, achas que seria um mau artífice de moderação, de justiça e de todas as outras virtudes demóticas?

- De maneira nenhuma - respondeu.

- Agora, se o povo vier a compreender que dizemos a verdade neste

ponto, continuará a irritar-se contra os filósofos e recusar-se-á a acreditar, connosco, que uma cidade só será feliz na medida em que o plano for traçado por artistas que utilizam um modelo divino?

- Não se irritará - disse ele -, se conseguir compreender. Mas como supões que os filósofos poderão traçar esse plano?

- Tomando como tela uma cidade e caracteres humanos, começarão por torná-los claros - o que não é nada fácil. Mas tu já sabes que eles diferem nisso dos outros, que não quererão ocupar-se de um Estado ou de um indivíduo para lhe traçar leis, senão quando o tiverem recebido ou tornado limpo.

- E com razão.

- Depois disso, não esboçarão a forma do governo?

- Sem dúvida.

- Penso que, em seguida, a rematar esse esboço, erguerão frequentemente os olhos, por um lado, para a essência da justiça, da beleza, da moderação e das virtudes desta natureza e, por outro, para a cópia humana que dela fazem; e, mediante a combinação e a miscelânea de instituições apropriadas, esforçar-se-ão por atingir a imagem da verdadeira humanidade, inspirando-se no modelo a que Homero, quando o encontra entre os homens, chama divino e semelhante aos deuses.

- Muito bem - disse ele.

- E apagarão, creio eu, e pintarão de novo, até obterem caracteres humanos tão caros à Divindade quanto o podem ser tais caracteres.

- Será, com certeza, um quadro soberbo!





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