A República - Cap. 2: Capítulo 2 Pág. 51 / 290

»Além disso, Sócrates, atenta noutra concepção da justiça e da injustiça desenvolvida pelos particulares e pelos poetas. Todos, em uníssono, celebram como belas a temperança e a justiça, mas consideram-nas difíceis e penosas; a intemperança e a injustiça, pelo contrário, parecem-lhes agradáveis e de fácil domínio, somente vergonhosas na óptica da opinião e da lei; as acções injustas, dizem eles, são mais proveitosas do que as justas, no conjunto, e aceitam de bom grado proclamar os maus e felizes e honrá-los, quando são ricos ou dispõem de algum poder; pelo Contrário, desprezam e olham de alto os bons que são fracos e pobres, embora reconhecendo que são melhores que os outros. Mas, de todos estes discursos, os mais estranhos são os que fazem acerca dos deuses e da virtude. Os próprios deuses, pretendem eles, reservaram muitas vezes aos homens virtuosos o infortúnio e uma vida miserável, ao passo que concediam aos maus a sorte contrária. Por seu lado, sacerdotes mendicantes e adivinhos vão às portas dos ricos e persuadem-nos de que obtiveram dos deuses o poder de reparar as faltas que eles ou os seus antepassados tenham podido cometer, mediante sacrifícios e encantamentos, com acompanhamento de prazeres e festas; se se quer prejudicar um inimigo por uma módica quantia, pode-se causar dano tanto ao justo como ao injusto, por meio das suas evocações e fórmulas mágicas, dado que, segundo afirmam, persuadem os deuses a porem-se ao seu serviço. Como apoio a todas estas asserções, invocam o testemunho dos poetas. Uns falam da facilidade do vício:

Para o mal em bandos nos encaminhamos

de bom grado: a estrada é suave e ele habita perto;

mas diante da virtude foi dor e suor que os deuses colocaram

e uma estrada comprida, pedregosa e íngreme. Os outros, para provar que os homens podem influenciar os deuses, alegam estes versos de Homero:

Os próprios deuses deixam-se vergar; e pelo sacrifício e a devota prece,

as libações e das vítimas o fumo, o homem aplaca a sua ira quando infringiu as suas leis e pecou.

»E produzem uma quantidade de livros de Museu e Orfeu, descendentes, dizem eles, de Selene e das Musas. Regulam os seus sacrifícios por esses livros e persuadem não só os particulares, mas também as cidades, de que se pode ser absolvido e purificado dos crimes, em vida ou depois da morte, mediante sacrifícios e festas a que chamam mistérios. Estas práticas livram-nos dos males do outro mundo, mas, se as desprezarmos, esperam-nos terríveis suplícios.





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