A República - Cap. 2: Capítulo 2 Pág. 69 / 290

e que nos poupem muitas outras ficções desta natureza. Que as mães, persuadidas pelos poetas, não assustem os filhos contando-lhes a despropósito que certos deuses vagueiam de noite sob a forma de estranhos de toda a espécie, a fim de evitarem, simultaneamente, blasfemar contra os deuses e tornar as crianças mais medrosas.

- Devem evitá-lo, com efeito - disse ele.

- Mas - prossegui - poderiam os deuses, incapazes de mudança em si mesmos, fazer-nos acreditar que aparecem sob formas diversas, usando de impostura e magia?

-Talvez.

- Como assim - exclamei. - Consentiria um deus em mentir, por palavras ou actos, apresentando-nos um fantasma em vez dele mesmo?

- Não sei - confessou.

- Não sabes - continuei - que a verdadeira mentira, se assim me posso exprimir, é igualmente detestada pelos deuses e pelos homens?

- Que queres dizer? - perguntou.

- Quero dizer - respondi - que ninguém aceita de bom grado ser enganado, na parte soberana do seu ser, acerca das matérias mais importantes; pelo contrário, nada se receia mais do que albergar aí a mentira.

- Ainda não compreendo - disse ele.

- Julgas, sem dúvida, que exprimo um oráculo; ora, eu digo que ser enganado na alma acerca da natureza das coisas, continuar a sê-lo e ignorá-lo, aceitar e manter o erro é o que se suporta menos; e é sobretudo neste caso que se detesta a mentira.

- E muito - acrescentou.

- Mas - prossegui -, com a maior exactidão, pode-se chamar verdadeira mentira ao que acabo de mencionar: a ignorância em que, na sua alma, se encontra a pessoa enganada; com efeito, a mentira nos discursos é uma imitação do estado da alma, uma imagem que se produz mais tarde, e não uma mentira absolutamente pura, não é?

- Certamente.

- Mas a mentira nos discursos? É por vezes útil a alguns, de modo a não merecer o ódio? Relativamente aos inimigos e àqueles a quem chamamos amigos, quando impelidos pelo furor ou pelo desatino, empreendem alguma acção má, não é útil como remédio para os desviar disso? E nessas histórias de que falávamos há pouco, quando, não sabendo a verdade sobre os acontecimentos do passado, damos a maior verosimilhança possível à mentira, não a tornamos útil?

- Sem dúvida que assim é.

- Mas por qual destas razões a mentira seria útil a Deus? Será a ignorância dos acontecimentos do passado que o leva a dar verosimilhança à mentira?





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