A República - Cap. 3: Capítulo 3 Pág. 87 / 290

- Na época em que aprendíamos as letras - prossegui -, só considerávamos que as conhecíamos suficientemente quando os seus elementos, em pequeno número, mas dispersos em todas as palavras, já não nos escapavam e, nem numa palavra curta nem numa comprida, não os desprezávamos, como inúteis de serem notados; então, pelo contrário, e esforçávamo-nos por distingui-los, persuadidos de que não havia outro meio de aprender a ler.

- É verdade.

- É igualmente verdade que não reconheceremos as imagens das letras, reflectidas na água ou num espelho, antes de conhecermos as próprias letras, porquanto tudo isto é objecto da mesma arte e do mesmo estudo.

- Com toda a certeza.

- Pois bem! De igual modo digo, pelos deuses, que não seremos músicos, nós e os guardas que pretendemos educar, antes de sabermos reconhecer as formas da moderação, da coragem, da generosidade, da grandeza de alma, das virtudes suas irmãs e dos vícios contrários, onde quer que apareçam dispersas; antes de descobrirmos a sua presença, onde quer que se encontrem, elas ou as suas imagens, sem desprezarmos nenhuma, nem nas pequenas coisas nem nas grandes, persuadidos de que elas são objecto da mesma arte e do mesmo estudo.

- É absolutamente necessário - reconheceu.

- Portanto - continuei -, o homem que reúne ao mesmo tempo boas disposições na sua alma e, no exterior, caracteres que se assemelham e harmonizam com essas disposições, porque participam do mesmo modelo, constitui o mais belo dos espectáculos para quem o pode contemplar.

- De longe, o mais belo.

- Mas o mais belo é também o mais agradável?

- Como não?

- Por conseguinte, o músico amará esses homens tanto quanto possível; mas não amará o homem desprovido de harmonia.

- Não - confessou -, pelo menos se for a alma a ter algum defeito; porém, se for o corpo, tomará o seu partido e consentirá em amar.

- Compreendo - repliquei. - Sentes ou sentiste um tal amor e eu aprovo-te. Mas diz-me: o prazer excessivo harmoniza-se com a temperança?

- Como poderia isso ser, visto que não perturba a alma menos que a dor?

- E com as outras virtudes?

- De maneira nenhuma.

- Com quê, então? Com a insolência e a incontinência?

- Mais do que com qualquer outra coisa.

- Mas conheces um prazer maior e mais vivo do que o do amor sensual?

- Não conheço - respondeu -, não há nenhum mais furioso.

- Pelo contrário, o amor autêntico ama com sabedoria e medida a ordem e a beleza?

- Certamente - disse ele.





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