Eneida - Cap. 6: Eneias no Mundo das Sombras Pág. 120 / 235

— Ó pai, foi a tua imagem, aparecendo-me muitas vezes em sonhos, que me obrigou a vir aqui. A armada troiana está segura no mar Tirreno. Permite, permite, ó pai, que eu aperte a tua mão direita e que não te afastes do meu abraço.

Ao recordar tantas coisas, as lágrimas enchiam-lhe o rosto. Tentou três vezes abraçar a sombra do pai, mas a imagem fugidio escapava-lhe das mãos, qual vento ligeiro, à semelhança do que acontecia nos sonhos. Nesse momento, Eneias viu, num vale, um bosque isolado, cujas árvores murmuravam à brisa, diante do qual, na pradaria, corria o rio Letes. Nas margens do curso de água agitavam-se muitíssimas sombras, indo e vindo, atarefadíssimas como abelhas num campo cheio de flores. Todo o local ressoava com a azáfama e Eneias, sem saber o que era aquilo, olhava espantado para o grande ajuntamento. Eis que Anquises disse:

— Esses filho, são os espíritos que estão destinados a subir novamente à terra para serem reencarnados. Bebem a água do Letes e, ao fazerem-no, esquecem totalmente a vida anterior. São almas que algum dia habitarão as corpos dos teus netos. Chamei-te aqui para te mostrar estas coisas, a fim de que continues depois a caminho da Itália, com maior vigor, para lançares lá as raízes de uma nova raça.

— Ó pai, devo crer que daqui sairão as almas outra vez para a luz, a dar vida nova aos corpos humanos? E porque tanto desejam elas voltar a respirar o ar da terra?

— Na verdade eu te direi, ó filho, o segredo desses mistérios divinos, pois o véu que cobre os olhos de todos os mortais foi agora retirado da minha vista. Em primeiro lugar, fica a saber que o céu e a terra, os mares e a lua, o Sol e as estrelas brilhantes são todos sustentados pelo grande espírito flamejante, grande mente omnisciente, de onde provem todas as coisas vivas—as raças dos homens, os animais das florestas, as criaturas aladas e todas as formas estranhas que habitam as águas dos oceanos. Cada liorma mortal toma dentro de si uma porção maior ou menor desse espírito universal, embora grande parte de seu fogo divino esteja sufocado e tolhido pelo cárcere da carne. É dessas centelhas inextinguíveis que emana todo o temor e desejo, todo o sofrimento e alegria, todo o amor e esperança. Quando vem a morte e o espírito é libertado da prisão corpórea, alguns dos defeitos que manchavam a forma terrena ainda se apegam a ele, devido à sua longa permanência na terra, e carrega-os para o Mundo das Sombras.





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