Eneida - Cap. 1: A Queda de Tróia Pág. 14 / 235

Corria na direcção do lar quando, ao passar perto do santuário de Vesta, nu Helena, escondida a um canto. Ao ver as chamas dos fogos sagrados tremeluzindo e iluminando o vulto da mulher agachada, apossou-se do coração de Eneias uma imensa cólera. Nasceu-lhe 0 desejo de vingar em Helena a pátria agonizante. Não era ela a causa última de todas as desgraças? Seria justo que ela voltasse incólume a Esparta e à Grécia, como rainha, revendo o esposo, a casa, os pais e os filhos e acompanhada de uma multidão de escravas e escravos troianos, depois de Príamo ter morrido pela espada, depois da cidade ter sido incendiada e depois do sangue troiano ter manchado tantas vezes as areias brancas daquelas praias? Não! Isso não poderia suceder! E, embora não seja glorioso punir uma mulher, nem pareça tão alto louvor, seria no entanto elogiado quem lhe desse o castigo merecido.

Possuído de ódio e premido por tais pensamentos, Eneias, com a espada desembainhada, dirigia-se para o templo, quando lhe apareceu de súbito a mãe, a deusa Vénus. Jamais lhe surgira numa visão assim tão clara e resplandecente, exactamente como refulgia entre os deuses de Olimpo. E ela pronunciou estas palavras, segurando-lhe o braço quase assassino:

— Filho, que dor tão grande faz medrar tão incontrolável ira? Porque te enfureces? Por que razão, em vez de voltares a tua vista para aquela mulher, não procuras antes o teu pai Anquises, alquebrado pelos anos? Porque não indagas se a tua esposa Creusa e o pequenino Ascânio são vivos? Se neles não tivesse eu pensado e deles cuidado, já as chamas os teriam devorado e o ferro cruel os teria trespassado. Não é naquela mulher, Helena, ou no seu raptor, Páris, que deves pôr a culpa dos desastres de Tróia, mas na cólera dos deuses que determinaram derrubá-la do alto do pedestal. Olha, dissiparei com o meu poder a nuvem que tolda os teus olhos mortais e lhes impede de ver as coisas como realmente são. Aqui, onde vês grandes construções a desmoronarem-se, pedras arrancadas, fumo e poeira, verás Neptuno com o seu tridente, atacando os próprios alicerces da cidade e fazendo-lhes aluir os muros. Mais do que todas, possuída de ódio contra a tua raça, divisarás a cruel Juno, dominando as portas e chamando mais tropas dos navios. E mais além, Minerva, resplandecendo numa nuvem com a figura da Medusa pintada no escuro, está de posse da cidadela. O próprio rei Júpiter incute animo ao inimigo e redobra-lhe as forças, instigando os deuses contra os teus. Mas não temas, filho, as ordens de tua mãe, nem lhe recuses obedecer. Apressa a fuga e põe fim a esses esforços vãos. Nunca me afastarei de ti e conduzir-te-ei a outra pátria.





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