Eneida - Cap. 4: Eneias e Dido Pág. 71 / 235

A água vinda da ponte de Averno foi espargida sobre os altares. Lá colocou ela também ervas cortadas ao luar, com foices de bronze, húmidas ainda de veneno negro; por fim, lançou à pira um sortilégio de amor tirado da testa de um potro recém-nascido, antes que a mãe o amamentasse. Ela mesma, com as mãos lavadas e sacramentadas, os pés descalças, a túnica solta, convocou os deuses e as estrelas para que a olhassem antes de morrer e fossem testemunhas do seu destino. Orou aos deuses justos para que se compadecessem dela, infeliz amante, cujo amor o Céu fizera sem igual em calor e profundidade.

Agora nada a podia deter. A sua sorte estava lançada.

Era noite e os corpos fatigados gozavam um merecido sono. As florestas e os mares tempestuosos tinham-se aquietado e os astros percorrido metade do seu caminho nocturno. O campo silenciara e os animais que povoam os lagos e os campos eriçados de silvados repousavam nos seus refúgios, no fundo das águas ou no cimo das árvores. Só não descansava a rainha de Cartago, insone na sua infelicidade, sem alívio para a alma torturada: Uma agonia de saudade ainda a assoberbava e a maré do amor apaixonado afogava-lhe o peito arfante.

«Que farei? — pensava. — Posso por acaso procurar novamente os pretendentes recusados, esses númidas de pele escura a quem tantas vezes desprezei, e humilhar-me, oferecendo-me para esposa? Irei com os navios, aceitando Eneias, o troiano orgulhoso, como meu senhor? Receber-me-ia ele assim, levando-me para as terras que demanda? Oh, Dido arruinada, não conheces ainda a perfídia profunda de seus corações? Devo persegui-los, fazendo regressar ou destruir os seus barcos antes que partam? Não, rainha infeliz, morre como mereces, termina todas as tuas dores com a lamina afiada. Tu, querida irmã, a quem as minhas lágrimas convenceram, foste a primeira a incentivar-me para esse amor louco, carregando-me com tais sofrimentos. Como lamento agora não ter mantido os meus votos de casamento com Siqueu e passar a vida sem pecado, sem vergonha e sem cuidados. Ah, Siqueu, alma querida, quebrei os votos que fiz sobre tuas cinzas!»





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