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Capítulo 3: III - O Sarau

Página 24

Martim Eicha seguira o exemplo paterno, e, como em todas as opiniões deste mundo os renegados são os mais fervorosos na sua nova crença, achara ele em consciência que para se mundificar das torpezas do islamismo devia abraçar a pura vida do sacerdócio. Cónego da Sé de Lamego, restaurada por Fernando Magno, e que nesta época se achava unida à de Coimbra, o bom do tornadiço não pudera na santidade do seu ministério riscar do espírito a lembrança profaníssima de que nascera filho de um váli. Voavam-lhe os pensamentos altivos para os paços reais, como à gata da fábula fugiam as unhas para o murganho depois de transformada em mulher. Finalmente os seus desejos cumpriram-se. A bela infanta de Portugal chamou-o à corte, apenas dela saiu desgostoso o arcebispo de Braga, cujo carácter austero mal sofria os amores de Fernando Peres e de D. Teresa. Martim Eicha era o homem talhado para o caso. O seu evangelho fora, por assim dizer, escrito num palimpsesto do Corão, e as doutrinas do Profeta, relativas à metade mais formosa do género humano, reverdeciam-lhe às vezes através da severidade das sacras páginas e confundiam-se a seus olhos com elas. Por esta causa, vinha o cónego Martim Eicha a ser o capelão mais a ponto naquelas intrincadas circunstâncias, em que os princípios de teologia moral andavam em tanta harmonia com os costumes, como neste bendito século décimo nono as sãs doutrinas políticas andam conformes com a realidade dos factos. Era, finalmente, a terceira pessoa daquela trindade argumentadora e disputante, o abade do Mosteiro de D. Mumadona, velho folgazão mas honesto, que na mesa dos banquetes despejava uma taça de vinho, e ainda um canjirão de cerveja, ou varria uma palangana de dobrada, iguaria mimosa desse tempo, com o mesmo fervor e devoto recolhimento com que na solidão da sua cela rezava as horas canónicas, ou garganteava no coro salmos e antífonas com os seus frades. Apesar dos benefícios que o ascetério de Guimarães recebera da infanta; apesar do gasalhado que encontrava no paço, o bom do velho torcia sem rebuço o nariz à tão íntima privança do conde Fernando Peres com a rainha.

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Capa do livro O Bobo
Páginas: 191
Página atual: 24

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
I - Introdução 1
II - Dom Bibas 8
III - O Sarau 18
IV - Receios e esperanças 27
V - A madrugada 38
VI - Como de um homenzinho se faz um homenzarão 45
VII - O homem do zorame 59
VIII - Reconciliação 66
IX - O desafio 80
X - Generosidade 90
XI - O subterrãneo 97
XII - A mensagem 110
XIII - A boa corda de cânave de quatro ramais 123
XIV - Amor e vingança 141
XV - Conclusão 157
Apêndice 173