O Bobo - Cap. 3: III - O Sarau Pág. 25 / 191

Não porque desse ouvidos aos maldizentes, que ainda nas mais puras acções vertem a peçonha de seus estômagos danados, mas porque não podia negar crédito ao que seus olhos viam, e a experiência e razão lhe ensinavam. Enxergava ao longe o crescer da tempestade que ameaçava assolar a terra de Portugal: vira nascer, engrossar e rebentar como um vulcão o ódio entranhável, acumulado por anos, entre o senhor de Trava e o moço Afonso Henriques; vira dividir-se a fidalguia em dois bandos; e quando o infante, dois meses antes da época da nossa história, desaparecera dos paços de Guimarães, seguido de vários ricos-homens e cavaleiros da sua parcialidade, o bom do abade conhecera que uma terribilíssima luta se ia travar entre a mãe e o filho, luta desnatural e monstruosa, cujo desfecho, fosse qual fosse, não podia deixar de gerar muitos crimes. A precipitação com que se fortificara o burgo, e as notícias vagas de que o infante se aproximava de Guimarães com uma hoste numerosa, e acompanhado do arcebispo de Braga e dos seus homens de armas, lhe punham ante os olhos, como iminentes e inevitáveis, as cenas tremendas que de longo tempo previra. O estado dos negócios públicos era o objecto da acesa prática dos três; ou, por nos servirmos de uma francesia da moda, eles faziam política. Era também o perigo que os ameaçava a ambos; era a nuvem procelosa que viam já no horizonte da sua vida, até aí tão povoada de deleites, tão rica de esplendor e de predomínio, o pensamento que turbava a fronte do nobre Fernando Peres, e fazia gotejar pelas faces da bela infanta as lágrimas, que em vão ela tentava conter. Com olhos enxutos e ânimo de ferro, a filha de Afonso VI tinha vivido, durante dezasseis anos, quase sempre nos campos de batalha, nos arraiais junto aos castelos cercados, ou encerrada nestes defendendo-os. Com olhos enxutos e ânimo de ferro, tinha visto várias vezes as rotas dos seus homens de armas, e tinha fugido com eles; assistira a muitas cenas de carnificina; ouvira muitas vezes pela alta noite, na tenda de guerra, gemidos de moribundos, e o uivo do lobo descendo das brenhas guiado pelo cheiro do sangue; havia apenas um ano que se vira constrangida a curvar a cerviz à fortuna de seu sobrinho, o imperador Afonso Raimundes; mas nunca sentira coar-lhe pelas veias o terror ou o desalento: a sua alma era a de guerreiro, escondida debaixo das formas delicadas e suaves de mulher. Criam-no todos: cria-o ela. Mas o prestígio passou. A dura prova a que a pusera uma paixão desgraçada revelava enfim a fraqueza feminil. Até então no jogo dos combates apenas arriscara o vasto senhorio de Portugal; mas no que se lhe oferecia agora expunha o amante, expunha todo o futuro, toda a esperança e todos os contentamentos.





Os capítulos deste livro