A ideia da doença, da solidão que ela traz, faziam agora parecer a João Eduardo mais amarga a perda de Amélia. Se adoecesse, teria de ir para o hospital. O malvado do padre tirara-lhe tudo - mulher, felicidade, confortos de família, doces companhias da vida!
Enfim, sentiram no corredor as duas senhoras que saíam. A mulher com a criança apanhou o seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando- se logo do banco junto da porta, disse com satisfação:
- Agora cá o patrão!
- Vossemecê tem muito que consultar? perguntou-lhe João Eduardo.
- Não senhor, é só receber a receita.
E imediatamente contou a história da sua chaga: fora uma trave que lhe caíra em cima; não fizera caso; depois a ferida assanhara-se; e agora ali estava, manco e curtidinho de dores.
- E vossa senhoria, é coisa de cuidado? perguntou ele.
- Eu não estou doente, disse o escrevente. São negócios com o senhor doutor.
Os dois homens olharam-se com inveja.
Enfim foi a vez do velho, depois a do homem amarelo de braço ao peito. João Eduardo, só, passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito difícil ir assim, sem cerimônia, pedir proteção ao doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se queixar primeiro de dores do peito ou desarranjos do estômago, e depois, incidentalmente, contar os seus infortúnios...
Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante dele, com sua longa barba grisalha que lhe caía sobre a quinzena de veludo preto, o largo chapéu desabado na cabeça, calçando as luvas de fio de Escócia.
- Olá! és tu, rapaz! Há novidade na Rua da Misericórdia? João Eduardo corou.
- Não senhor, senhor doutor, queria falar-lhe em particular.
Seguiu-o ao gabinete - o conhecido gabinete do doutor Gouveia que, com o seu caos de livros, o seu tom poeirento, uma panóplia de flechas selvagens e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade a reputação duma "Cela de Alquimista".