O Crime do Padre Amaro - Cap. 14: Capítulo 14 Pág. 256 / 478

Na saleta da administração seria um aparato judicial; à sua mesa, o senhor administrador, grave como a personificação da Ordem; em redor os amanuenses, ativos sobre o seu papel selado; e o réu, defronte, na atitude tradicional dos criminosos políticos, os braços cruzados sobre o peito, a fronte alta desafiando a morte. Ele, Carlos, então, entraria e diria: "Senhor administrador, aqui venho espontaneamente pôr-me ao serviço da vindita social!"

- Hei-de-lhes mostrar, com uma lógica de ferro, que é tudo resultado duma conspiração do racionalismo. Podes estar certa, Amparozinho, é uma conspiração do racionalismo! disse, puxando, com um gemido de esforço, as presilhas dos botins de cano.

- E repara se ele fala da pequena, da S. Joaneira...

- Hei-de tomar notas. Mas não se trata da S. Joaneira. Isto é um processo político!

Atravessou o largo majestosamente, certo que os vizinhos, pelas portas, murmuravam: Lá vai o Carlos depor... Ia depor, sim, mas não sobre o murro no ombro de sua senhoria. Que importava o murro? O grave era o que estava por trás do murro - uma conspiração contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a Propriedade! É o que ele provaria de alto ao senhor administrador. Este murro, ilustríssimo senhor, é o primeiro excesso duma grande revolução social!

E empurrando o batente de baeta que dava acesso para a administração do concelho de Leiria, ficou um momento com a mão no ferrolho, enchendo o vão da porta da pompa da sua pessoa. Não, não havia o aparato judicial que ele concebera. O réu lá estava, sim, o pobre João Eduardo, mas sentado à beira do banco, com as orelhas em brasa, olhando estupidamente o soalho. Artur Couceiro, embaraçado com a presença daquele íntimo dos serões da S. Joaneira, ali no assento dos presos, para o não olhar fixara o nariz sobre o imenso copiador de ofícios, onde desdobrara o Popular da véspera.





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