Caiu então numa melancolia histérica que a envelhecia; passava os dias suja e desarranjada, não querendo dar cuidados ao seu corpo pecador; todo o movimento, todo o esforço lhe repugnava; as mesmas orações lhe custavam, como se as julgasse inúteis; e tinha atirado para o fundo duma arca o enxoval que andava a costurar para o filho - porque o odiava, aquele ser que ela sentia mexer-se-lhe já nas entranhas e que era a causa da sua perdição. Odiava-o - mas menos que o outro, o pároco que lho fizera, o padre malvado que a tentara, a estragara, a atirara às chamas do Inferno! Que desespero quando pensava nele! Estava em Leiria sossegado, comendo bem, confessando outras, namorando-as talvez - e ela ali sozinha, com o ventre condenado e enfartado do pecado que ele lá depusera, ia-se afundindo na perdição sempiterna!
Decerto esta excitação a teria matado - se não fosse o abade Ferrão que começara então a vir ver muito regularmente a irmã do amigo cónego.
Amélia ouvira falar muitas vezes nele na Rua da Misericórdia; dizia- se lá que o Ferrão tinha "ideias esquisitas"; mas não era possível recusar-lhe nem a virtude da vida nem a ciência de sacerdote. Havia muitos anos que era ali abade; os bispos tinham-se sucedido na diocese, e ele ali ficara esquecido naquela freguesia pobre, de côngrua atrasada, numa residência onde chovia pelos telhados. O último vigário-geral, que nunca dera um passo para o favorecer, dizia-lhe todavia, liberal de palavreado:
- Você é um dos bons teólogos do reino. Você está predestinado por Deus para um bispado. Você ainda apanha a mitra. Você há-de ficar na história da Igreja portuguesa como um grande bispo, Ferrão!
- Bispo, senhor vigário-geral! Isso era bom! Mas era necessário que eu tivesse o arrojo dum Afonso de Albuquerque ou dum D. João de Castro, para aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!