Silveirinha fora avisado pelo Sequeira, por Travassos, por outros entendedores, que era uma espiga: o marquês tinha a sua moral própria para negócios de gado, e exultaria em intrujar um pichote. Apesar de advertido, Eusébio cedendo à influência da grossa voz do marquês, da robustez do seu físico, da antiguidade do seu título, não ousava recusar. Mas hesitava; e nessa noite deu a resposta usual de forreta, coçando o queixo, cosido ao muro:
- Eu verei, marquês... Um conto e quinhentos é dinheiro...
O marquês ergueu dois braços ameaçadores como duas trancas:
- Homem, sim ou não! Que diabo... Dois animais que são duas estampas... Irra ! Sim ou não!
Eusébio ajeitou as lunetas, rosnou:
- Eu verei... Ele é dinheiro. Sempre é dinheiro...
- Queria você, talvez, pagá-las com feijões? Você leva-me a cometer um excesso!
O piano ressoou, em dois acordes cheios, sob os dedos do Cruges; e o marquês, baboso por música, imediatamente largou a questão das éguas, recolheu em pontas de pés. Eusébiozinho ainda ficou a remoer, a coçar o queixo; enfim, às primeiras notas de Steinbroken, veio pousar como uma sombra silenciosa entre a ombreira e o reposteiro.
Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabeleira como pousada às costas, Cruges feria o acompanhamento, de olhos cravados no livro de Melodias Finlandesas. Ao lado, empertigado, quase oficial, com o lenço de seda na mão, a mão fincada contra o peito, Steinbroken soltava um canto festivo, num movimento de tarantela triunfante, em que passavam, como um entrechocar de seixos, esses bocados de palavras de que o marquês gostava, frisk, slécht, clikst, glukst. Era a Primavera - fresca e silvestre, primavera do norte em país de montanhas, quando toda uma aldeia dança em coros sob os fuscos abetos, a neve se derrete em cascatas, um sol pálido aveluda os musgos, e a brisa traz o aroma das resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras de Steinbroken ruborizavam-se, inchavam. Nos tons agudos todo ele se ia alçando sobre a ponta dos pés, como levado no compasso vivo; despegava então a mão do peito, alargava um gesto, as belas jóias dos seus anéis faiscavam.
O marquês, com as mãos esquecidas nos joelhos, parecia beber o canto.