Passara essa grande raça dos Mários, homens de beleza, de inspiração, realizando os grandes tipos líricos. Nicolini era já uma degeneração... Isto fez lembrar a Pati. A condessa adorava-a, e a sua graça de fada, e a sua voz semelhante a uma chuva de ouro!...
Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil coisas; em certos movimentos, o cabelo crespamente ondeado, tomava tons de ouro vermelho: e em torno dela errava, no calor do gaz e da enchente, um aroma exagerado de verbena. Estava de preto, com uma gargantilha de rendas negras, à Valois, afogando-lhe o pescoço onde pousavam duas rosas escarlates. E toda a sua pessoa tinha um arzinho de provocação e de ataque. De pé, calado, grave, o conde batia a coxa com a claque fechada.
O quarto acto começara, Carlos ergueu-se; e os seus olhos encontraram defronte, na frisa do Cohen, o Ega, de binóculo, observando-o, mirando a condessa e falando a Rachel, que sorria, movia o leque com um ar dolente e vago.
- Nós recebemos às terças feiras, disse a condessa a Carlos - e o resto da frase perdeu-se num murmúrio e num sorriso.
O conde acompanhou-o fora, ao corredor.
- É sempre uma honra para mim, dizia ele caminhando ao lado de Carlos, fazer o conhecimento das pessoas que valem alguma coisa neste país... V. Ex.ª é desse número, bem raro infelizmente.
Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz lenta e rotunda:
- Não o lisonjeio. Eu nunca lisonjeio... Mas a v. Ex.ª podem-se dizer estas coisas, porque pertence à elite: a desgraça de Portugal é a falta de gente. Isto é um país sem pessoal. Quer-se um bispo? Não há um bispo. Quer-se um economista? Não há um economista. Tudo assim! Veja v. Ex.ª mesmo nas profissões subalternas. Quer-se um bom estofador? Não há um bom estofador...
Um cheio de instrumentos e vozes, de um tom sublime, passando pela porta da frisa entreaberta, cortou-lhe umas últimas palavras sobre a deficiência dos fotógrafos... Escutou, com a mão no ar:
- É o coro dos punhais, não? Ah vamos a ouvir... Ouve-se sempre isto com proveito. Há filosofia nesta música... É pena que lembre tão vivamente os tempos da intolerância religiosa, mas há ali incontestavelmente filosofia!