Encolheu os ombros, sem força:
- Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar falatórios.
E abancou, meteu um bico novo na pena, escolheu uma folha de papel em que o monograma luzia mais largo, começou a copiar a carta na sua maravilhosa letra, com finos e grossos, de uma nitidez de gravura em aço.
Ega no entanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava em torno da mesa, seguindo sofregamente as linhas que traçava a mão aplicada do Dâmaso, ornada de um grosso anel de armas. E durante um momento atravessou-o um susto... Dâmaso parara, com a pena indecisa. Diabo! Acordaria enfim, no fundo de toda aquela gordura balofa, um resto escondido de dignidade, de revolta?... Dâmaso alçou para ele os olhos embaciados:
- Embriaguez é com n ou com m?
- Com um m, um m só, Dâmaso! acudiu Ega afectuosamente. Vai muito bem... Que linda letra você tem, caramba!
E o infeliz sorriu à sua própria letra - pondo a cabeça de lado, no orgulho sincero daquela soberba prenda.
Quando findou a cópia foi Ega que conferiu, pôs a pontuação. Era necessário que o documento fosse chic e perfeito.
- Quem é o seu tabelião, Dâmaso?
- O Nunes, na rua do Ouro... Porque?
- Oh! nada. É um detalhe que nestes casos se pergunta sempre. Mera cerimónia... Pois amigos, como papel, como letra, como estilo, está de apetite a cartinha!
Meteu-a logo num envelope onde rebrilhava a divisa «Sou Forte», sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o chapéu, batendo no ombro do Dâmaso com uma familiaridade folgazã e leve:
- Pois, Dâmaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fora de portas, numa poça de sangue! Assim é uma delicia. E adeus...Não se incomode você. Então o grande sarau sempre é na segunda-feira? Vai lá tudo, hein! Não venha cá, homem... Adeus!
Mas o Dâmaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no patamar reteve o Ega, desafogou outra inquietação que o assaltara:
- Isso não se mostra a ninguém, não é verdade, Ega?