Teve um grande gesto de revolta e de dor. De novo os seus passos, mais pesados, mais lentos, se sumiram no corredor.
Ega ficou junto da porta, um momento, estarrecido. Depois foi-se despindo devagar, decidido a dizer a Carlos muito simplesmente, ao outro dia, antes de partir para Celorico, que a sua infâmia estava matando o avô, e o forçava a ele, seu melhor amigo, a fugir para a não testemunhar por mais tempo.
Mal acordou, puxou a mala para o meio do quarto, atirou para cima da cama, às braçadas, a roupa que ia emalar. E durante meia hora, em mangas de camisa, lidou nesta tarefa, misturando aos seus pensamentos de cólera lembranças da soirée da véspera, certos olhares da Alvim, certas esperanças que lhe tornavam saudosa a partida. Um alegre sol dourava a varanda. Terminou por abrir a vidraça, respirar, olhar o belo azul de inverno. Lisboa ganhava tanto com aquele tempo! E já Celorico, a quinta, o padre Serafim, lhe estendiam de longe a sua sombra na alma. Ao baixar os olhos viu o dog-cart de Carlos atrelado com a Tunante, que escarvava a calçada animada pelo ar vivo. Era Carlos decerto que ia sair cedo - para não se encontrar com ele e com o avô!
Num receio de o não apanhar nesse dia, desceu correndo. Carlos aferrolhára-se na alcova de banho. Ega chamou, o outro não tugiu. Por fim Ega bateu, gritou através da porta, sem esconder a sua irritação:
- Tem a bondade de escutar!... Então partes para Santa Olávia, ou quê?
Depois de um instante, Carlos lançou de lá, entre um rumor d'agua que caía:
- Não sei... Talvez... Logo te digo...
O outro não se conteve mais:
- É que se não pode ficar assim eternamente... Recebi uma carta de minha mãe... E se não partes para Santa Olávia, eu vou para Celorico... É absurdo! Já estamos nisto há três dias!
E quase se arrependia já da sua violência, quando a voz de Carlos se arrastou de dentro, humilde e cansada, numa suplica:
- Por quem és, Ega! Tem um bocado de paciência comigo. Eu logo te digo...
Numa daquelas súbitas emoções de nervoso, que o sacudiam os olhos do Ega humedeceram.