Os Maias - Cap. 17: Capítulo 17 Pág. 598 / 630

Ainda errava um vago cheiro de incenso e de fenol. No lustre do corredor havia uma luz só e dormente.

- Já anda aqui um ar de ruína, Vilaça.

- Ruinazinha bem confortável, todavia murmurou o procurador dando um olhar às tapeçarias e aos divãs, e esfregando as mãos, arrepiado da friagem da noite.

Entraram no escritório de Afonso, onde durante um momento se ficaram aquecendo ao lume. O relógio Luiz XV bateu finalmente as nove horas - depois a toada argentina do seu minuete vibrou um instante e morreu. Vilaça preparou-se para começar a sua tarefa.

Ega declarou que ia para o quarto arranjar também a sua papelada, fazer a limpeza final de dois anos de mocidade...

Subiu. E pousara apenas a luz sobre a cómoda, quando sentiu ao fundo, no silêncio do corredor, um gemido longo, desolado, de uma tristeza infinita. Um terror arrepiou-lhe os cabelos. Aquilo arrastava-se, gemia no escuro, para o lado dos aposentos de Afonso da Maia. Por fim, reflectindo que toda a casa estava acordada, cheia de criados e de luzes, Ega ousou dar alguns passos no corredor, com o castiçal na mão trémula.

Era o gato! Era o reverendo Bonifácio, que, diante do quarto de Afonso, arranhando a porta fechada, miava doloridamente. Ega escorraçou-o, furioso. O pobre Bonifácio fugiu, obeso e lento, com a cauda fofa a roçar o chão: mas voltou logo e esgatanhando a porta, roçando-se pelas pernas do Ega, recomeçou a miar, num lamento agudo, saudoso como o de uma dor humana, chorando o dono perdido que o acariciava no colo e que não tornara a aparecer.

Ega correu ao escritório a pedir ao Vilaça que dormisse essa noite no Ramalhete. O procurador acedeu, impressionado com aquele horror do gato a chorar. deixara o montão de papeis sobre a mesa, voltara a aquecer os pés ao lume dormente. E voltando-se para o Ega, que se sentara, ainda todo pálido, no sofá bordado a matiz, antigo lugar de D. Diogo, murmurou devagar, gravemente:

- há três anos, quando o Sr. Afonso me encomendou aqui as primeiras obras, lembrei-lhe eu que, segundo uma antiga lenda, eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete.





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