O Processo - Cap. 9: Capítulo 9 Pág. 174 / 183

Ele não abandona o seu posto durante todos estes anos nem fecha a porta senão no último minuto; tem consciência da importância do seu papel, pois diz: 'Eu sou poderoso'; é respeitador para com os seus superiores, pois diz: 'Sou apenas o porteiro mais baixo'; não é falador, visto que durante todos estes anos apenas faz aquilo a que se chama 'perguntas impessoais'; não é pessoa subornável, pois diz, ao aceitar uma prenda: 'Aceito isto apenas para evitar que pense que deixou alguma coisa por acabar'; relativamente ao cumprimento do seu dever, não se deixa mover nem por piedade nem por raiva, pois dizem-nos que o homem fatigou o porteiro de tanto o importunar'; e, finalmente, até mesmo o seu aspecto exterior sugere um carácter pedante... o longo e pontiagudo nariz e a comprida e fina barba preta à tártaro. Poder-se-á imaginar um porteiro mais fiel? No entanto, o porteiro possui outras características que podem favorecer alguém que procure admissão e que tornam bastante compreensível que ele excedesse até certo ponto o seu dever ao sugerir a possibilidade de uma futuro admissão. Porque é inegável que ele é um simplório e, consequentemente, um pouco presumido. Vejam-se as afirmações que ele faz acerca do seu próprio poder e do poder dos outros porteiros, bem como da sua aparência terrível, que até para ele se torna insuportável... sustento que estas afirmações podem ser suficientemente verídicas, mas que o modo como ele as patenteia mostra que as suas ideias são confusas por simplicidade de espírito e presunção. A este respeito, os comentadores afirmam: 'A ideia exacta de qualquer assunto e a não compreensão do mesmo assunto não se excluem completamente uma à outra.' Deve-se, de qualquer modo, admitir que tal simplicidade e presunção, embora pouco evidentes, possam enfraquecer a sua defesa da porta; são como brechas no carácter do porteiro. A isto se deve acrescentar que o porteiro parece ser uma criatura afável por natureza e não está a fazer permanentemente alarde da dignidade do seu cargo. Nos primeiros momentos, permite-se convidar o homem a entrar, apesar do veto escrupulosamente mantido contra a entrada; em seguida, por exemplo, não manda o homem embora, mas dá-lhe, tal como nos é relatado, um banco para se sentar ao lado da porta. A paciência com que suporta os rogos do homem durante todos estes anos, as conversas breves, a aceitação de prendas, a polidez com que permite ao homem blasfemar alto, na sua presença, contra o destino pelo qual ele próprio se havia tornado responsável, tudo isto nos permite pressupor a existência de certos sentimentos piedosos. Nem todos os porteiros teriam actuado deste modo.





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