É outra coisa mais vaga - imponderável, translúcida: a gentileza. Ai, e como eu a vou descobrir em tudo, em tudo - a gentileza… Daí, uma ânsia estonteada, uma ânsia sexual de possuir vozes, gestos, sorrisos, aromas e cores!…
"…Lume doido! Lume doido!… Devastação! Devastação!…
Mas logo, serenando:
- A boa gente que aí vai, meu querido amigo, nunca teve destas complicações. Vive. Nem pensa… Só eu não deixo de pensar… O meu mundo interior ampliou-se - volveu-se infinito, e hora a hora se excede! É horrível. Ah! Lúcio, Lúcio! tenho medo -medo de soçobrar, de me extinguir no meu mundo interior, de desaparecer da vida, perdido nele…
"…E aí tem o assunto para uma das suas novelas: um homem que, à força de se concentrar, desaparecesse da vida - imigrado no seu mundo interior…
"Não lhe digo eu? A maldita literatura…
Sem motivos nenhuns, livre de todas as preocupações, sentia-me entanto esquisitamente disposto, essa tarde. Um calafrio me arrepiava toda a carne - o calafrio que sempre me varara nas horas culminantes da minha vida.
E Ricardo, de novo, apontando-me uma soberba vitória que dois esplêndidos cavalos negros tiravam:
- Ah! como eu me trocaria pela mulher linda que ali vai… Ser belo! ser belo!… ir na vida fulvamente… ser pajem na vida… Haverá triunfo mais alto?…
"A maior glória da minha existência não foi - ah! Não julgue que foi - qualquer elogio sobre os meus poemas, sobre o meu génio. Não. Foi isto só: eu lhe conto:
"Uma tarde de Abril, há três anos, caminhava nos grandes bulevares, solitário como sempre. De súbito, uma gargalhada soou perto de mim… Tocaram-me no ombro… Não dei atenção… Mas logo a seguir me puxaram por um braço, garotamente, com o cabo de uma sombrinha… Voltei-me… Eram duas raparigas… duas raparigas gentis, risonhas… Àquela hora, duas costureiras - decerto - saídas dos ateliers da Rua da Paz.